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A poesia ao serviço do Estado

May 12, 2022

A poesia ao serviço do Estado

Tradução chinesa de poesia anticolonial de expressão portuguesa

Nos anos 50 do século passado, até ao início da Revolução Cultural (1966-1976), a jovem República Popular da China começa a sentir urgência em sair do isolamento imposto pela comunidade internacional. Ao dar os primeiros passos no estabelecimento de relações oficiais ou mesmo não oficiais com o mundo exterior – sobretudo dentro da esfera de influência da URSS – a China popular procura, de todas as formas, nomeadamente através da diplomacia cultural, estabelecer “amizade” com os futuros “países irmãos”. 

Ao identificar-se com a linha de luta das nações colonizadas de expressão portuguesa e procurando conquistar mais influência na cena internacional, a China revolucionária aposta na tradução literária. Na Conferência dos Escritores Afro-asiáticos de 1958, em Tasquente (capital do actual Uzbequistão), estiveram presentes intelectuais como Kuo Mo-jo (em mandarim: Guō Mòruò, 1892-1978), uma das figuras do sector cultural da China continental mais importantes de então e também presidente da Academia Chinesa de Ciências (1949-1978), Mário Pinto de Andrade (1928-1990), um dos líderes da luta pela independência angolana, e Marcelino dos Santos (1929-2020), poeta moçambicano.

A nova China dedica a Marcelino dos Santos uma antologia poética exclusiva, em 1962, ao passo que Angola merece, no ano seguinte, uma colectânea nacional. Vários poemas cabo-verdianos ou guineenses são igualmente traduzidos e inseridos nas diversas antologias africanas. Nestas publicações que o círculo intelectual da China comunista tem o privilégio de aceder, os lutadores africanos pela independência são apresentados como revolucionários e, sobretudo, como poetas.

Num artigo que escrevi recentemente no Jornal Tribuna de Macau evoquei Gē Bǎoquán (1913-2000), o maior divulgador chinês de Púchkin e Shevchenko e que é curiosamente também tradutor de vários poetas africanos de língua portuguesa, tendo até elaborado estas antologias de Marcelino dos Santos e de Angola. Traduziu também, através da língua russa, Aguinaldo Fonseca (1922-2014).

Yuán Míngqīng e Zhāng Lìfāng , investigadoras chinesas de estudos africanos, escreveram, em 2020, um artigo no portal xangainês de notícias “The Paper” sobre o “Movimento literário afro-asiático e a história [chinesa] da tradução da literatura africana”. A anglicista e a historiadora de arte, respectivamente, apontam que “, quando a China e os países africanos já deixam de ser representantes revolucionários, a retórica de aliança ‘anti-imperialista’ ou ‘anticolonialista’ perde validade”.

Neste contexto, tais poemas em língua portuguesa, traduzidos por importantes figuras como Gē Bǎoquán ou Yè Jūnjiàn (1914-1999), outro importante tradutor da China moderna, através de uma terceira língua, parecem ter caído no esquecimento. Independentemente do seu valor histórico e literário, que melhor poderão ser julgados no âmbito de investigações mais exigentes, estas traduções para o mandarim padronizado pela República Popular da China são, sem dúvida alguma, testemunhos de esforços de uma diplomacia cultural com forte influência ideológica. 

Com foco na poesia em português, apresento a seguir algumas antologias publicadas antes e depois da Revolução Cultural, durante a qual a produção da literatura estrangeira traduzida esteve praticamente ausente, com uma excepção vinda de Moçambique da qual melhor falaremos neste artigo.

1. “Antologia de Poesia Africana Moderna” (現代非洲詩集), 1958

Esta antologia, ainda com o título escrito em chinês tradicional, é testemunha da história da simplificação dos caracteres chineses – parte do texto encontra-se já em escrita simplificada, enquanto muitos caracteres mantêm-se naquela que hoje é conhecida como grafia tradicional. Isto demonstra como a imposição da simplificação da escrita chinesa na República Popular foi progressiva.

A “Antologia de Poesia Africana Moderna” foi compilada pela revista “Yìwén” (“Textos Traduzidos”, hoje com o título inglês “World Literature”) e publicada pela conhecida “The Writers Publishing House”, em Pequim, órgão do Estado chinês, para apresentar na conferência afro-asiática acima mencionada, na então República Socialista Soviética Uzbeque. O livro começa com oito poemas da África então portuguesa.

De Lilinho Mikaia (Лилинью Микайя, pseudónimo de Marcelino dos Santos na URSS) a antologia tem poemas como “Canto do amor natural” (1953, Песня истинной любви/眞实的爱情之歌) ou “Xangana Canção” (Шангана/山嘉納), de Noémia de Souza podemos ler “Samba” (1949, 姍巴舞曲) e de António Rui de Noronha (1909-1943 o trabalho “Surge et Ambula” (anos 1940; Вставай и действуй/起来,行动吧!). As traduções dos poemas de Mikaia e Noronha são da autoria de Shǐ Mǐn.

Entre os restantes poemas oriundos das antigas colónias portuguesas constam ainda “Canção a Sabalu” (桑巴魯之歌), de Mário Pinto de Andrade e, de Cabo Verde, “Mamãe” (1936) que é uma obra de Osvaldo Alcântara (pseudónimo de Baltasar Lopes da Silva, 1907 – 1989). No final da antologia ainda é incluído um ensaio de Carlos Kalungano (como também era conhecido Marcelino dos Santos) e de Mário Pinto de Andrade, a “Voz do Povo” (Голос народа/人民的呼声), e uma crítica de Elena Galperina (1918-1996) intitulada “África da cólera e da esperança” (1958, Африка гнева и надежды).

As imagens da  “Antologia de Poesia Africana Moderna” estão disponíveis no portal https://kongfz.com/, do alfarrabista “Memória Popular”.

2. “Poesias” de Lilinho Mikaia (米凱亚詩选) , 1962

Também aqui o título surge com caracteres “meio simplificados”, sendo testemunho da nova política para a língua da República da época. Ao mesmo tempo, a inscrição em português

Lilinho Mikaia
(Marcelino dos Santos)
POESIAS

está incluída neste livro publicado em Maio de 1962. A antologia é elaborada por um dos maiores estudiosos das línguas eslavas da China moderna, Gē Bǎoquán, que escreveu um texto de introdução. Aqui traduzo e transcrevo as primeiras linhas do prefácio de Gē:

Lilinho Mikaia, nome de um poeta moçambicano da África oriental não é um desconhecido do nosso vasto público chinês. A sua obra tem sido apresentada desde o aparecimento de “Xangana” e “Canto do amor natural”, na edição da revista mensal “Yìwén”, de 1958, dedicada à “Literatura dos países afro-asiáticos”. Posteriormente, a “Antologia de Poesia Africana Moderna”, compilada pela “Yìwén”, ou “A Voz Africana” da “Shanghai Literature & Art Publishing House” também incluem os seus poemas. Graças a isso, justamente, ficamos não apenas familiarizados com a sua poesia, mas amantes dela. 

A antologia inclui uma boa dezena de poemas traduzidos da versão russa de 1959 da poeta Lydia Nekrasova (1910-1977) como é o caso de “Aqui nascemos” (Здесь мы родились/我们就在这儿诞生成长), “Onde estou” (Где я?/我生活在什么地方?), “Canto do amor natural”, “A um menino do meu país” (Мальчику моей страны/给我的祖国的孩子), “Xangana canção” (山甘納), “Voz renascente” (Возрожденный голос/复活的呼声), “Sonho de mãe negra” (Мечта черной мамы/黑媽媽的梦想), “Até quando” (До каких пор?/这究竟要拖延到什么时光?) e “Gosto de viver” (Радость жизни/生命的欢乐).

Além destes poemas, a antologia elaborada por Gē inclui ainda “Oferenda” (礼物), “Saudade da terra” (怀念祖国), “Sentidos opostos” (对立的感情), “Recordação de minha avó” (回想我的祖母), “Xangana filho pobre” (山甘納——穷苦的儿子), “Dor” (痛苦), “Perdão mamã” (原谅我吧,媽媽!) e “À minha pátria” (給我的祖国). Estes poemas seriam mais tarde, em 1984, seleccionados para a antologia publicada pela Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO).

A versão de Gē, passada para chinês a partir do russo, compreende ainda “É preciso plantar” (是种树的时候啦!) e mais seis poemas que não fazem parte da versão da AEMO.

No epílogo da colectânea, Gē lembra ainda:

Recordo-me que, durante a Conferência dos Escritores Afro-asiáticos de Tasquente, em Outubro de 1958, numa recepção organizada por parte da delegação de escritores chineses para os escritores africanos, vi vários poetas e escritores da África portuguesa, entre os quais Marcelino dos Santos, de Moçambique, e Mário Pinto de Andrade e Viriato da Cruz, de Angola. Quando lhes oferecemos a “Antologia de Poesia Africana Moderna”, compilada pela revista “Yìwén”, ficaram contentíssimos e pediram-nos para ler em voz alta as traduções chinesas dos seus nomes e obras. Com pena nossa, não sabíamos que Marcelino dos Santos era justamente Lilinho Mikaia, que já está apresentado naquela colectânea. A partir do meu regresso de Tasquente, comecei a traduzir a obra de Mikaia. Mikaia escreve em português. A tradução é feita a partir das versões russas disponíveis pela tradutora soviética Lydia Nekrasova. Ao traduzir, referi-me também à “Antologia dos Poetas Africanos” (Editora Literatura Oriental, de Moscovo, 1958), “Canto do amor natural” (antologia de Mikaia publicada pelo jornal “Pravda”, 1959) […]

“Poesias” de Lilinho Mikaia pode encontrar-se no site da “Livraria Hé Huì Míng”.

Menos de um ano depois, em Abril de 1963, a antologia foi publicada em nome de Marcelino dos Santos, sendo acrescentado o poema “A terra treme” e retirados “Sonho de mãe negra” e os textos de Gē. A capa é do artista Yè Rán (1931-1995), antigo colaborador da Joint Publishing Company e da People’s Literature Publishing House.

3. “Antologia de Poesia Angolana”, 1962

De capa vermelha, com um grafismo revelador do exotismo africano, de autoria do pintor Zhāng Shǒuyì (1930-2008) e um título inglês inscrito nesta publicação – raro na época – o livro foi, à semelhança das antologias que aqui descrevi, publicado em 1962 pela The Writers Publishing House, órgão da Associação dos Escritores da China. 

Desta vez, Gē, que igualmente traduziu e compilou esta “Antologia de Poesia Angolana”, não deixou qualquer comentário à obra. O livro inclui poemas de Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989).

Esta obra de Gē inclui a sua própria tradução de “Canção a Sabalu” (薩巴魯之歌) a partir do russo. Na altura, escreveu no jornal Diário do Povo:

Esta “Canção a Sabalu” agora traduzida é um famoso poema escrito em 1953 na língua quimbundo. Este poema demonstra não apenas o devastador destino de que os povos da África portuguesa sofrem sob o domínio esclavagista do colonialismo, mas é igualmente um acto de condenação e protesto contra os colonialistas portugueses, mobilizando o povo a lutar pela libertação.

A antologia integra ainda poemas como “Fogo e Ritmo” (Пламя и ритмы/火焰和节奏), “Adeus na Hora da Largada” (出发时的告别词), “Aspiração” (灵感), “Poesia Africana” (非洲的诗), de autoria de Agostinho Neto, e “Tarde de Sábado” (1956), de Mário António Fernandes de Oliveira, que, já na altura em que foi publicada a obra se tinha estabelecido em Portugal. 

Imagem: Associação Tchiweka de Documentação

4. “Antologia da Poesia de Combate Moçambicano”, 1975

Finalmente, apresentamos a última antologia dos poetas africanos de expressão portuguesa, a “Antologia da Poesia de Combate Moçambicano”, publicada pela People’s Literature Publishing House, em 1975, isto é, numa China sacudida pelos últimos anos da Revolução Cultural.

O Grupo de Operários da sociedade Shougang prefaciou a tradução chinesa da “Poesia de Combate” da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO):

Os povos revolucionários do Terceiro Mundo e por todo o mundo sentem uma enorme alegria pela vitória de Moçambique. A nossa classe trabalhadora chinesa está feliz do fundo do coração. Embora a China e Moçambique tenham uma distância geográfica de mil montanhas, dez mil rios, uma luta comum anti-imperialista e anticolonialista faz com que estejamos intimamente vinculados. Somos companheiros de batalha na mesma frente. A vitória do povo moçambicano é igualmente nossa. O povo chinês continua a seguir as linhas de orientação do Presidente Mao, insistindo, como sempre, em apoiar a luta do povo moçambicano pela justiça. Com os povos do terceiro mundo, lutamos juntos e vencemos juntos para sempre.

Os poemas dests obra dão forma a uma das raras traduções publicadas durante a Revolução Cultural. Os tradutores são Wáng Liánhuá e Xǔ Shìquán, sendo este último um actual especialista da “questão de Taiwan”.

Começando pelo poema do primeiro presidente de Moçambique (1975-1986), Samora Machel (1933-1986), a antologia faz ecoar “Josina Tu Não Morreste” (1975, 乔谢娜,你没有死) e inclui também um poema da própria Josina Machel (1945-1971), primeira mulher do ex-líder: “É este o momento” (1971, 等待的时刻到了). Incluindo a poesia de nomes como Marcelino dos Santos, Jorge Rebelo, Armando Guebuza e Sérgio Vieira (1941-2021), a obra traduz mais de uma dezena de trabalhos do caderno I da “Poesia” da FRELIMO. 

São exemplos:

“Moçambique chorou e chora” (莫桑比克在哭泣); Jackson,
“Canto de um militante” (战士之歌); Djakama,
“O Guerrilheiro em marcha” e “O Guerrilheiro”; Damião Cosme,
“Minha mãe” (我的妈妈); Kantumbyanga,
“Moçambique diz” (莫桑比克的话); Alfredo Manuel,
“Morrer pela pátria” (为袓国而死); Luchwacha,
“É nosso dever” (我们的义务); Atumbwidao,
“Creio em ti herói” (我信任你呵,英雄!); Omar Juma,
“Moçambique minha terra” (莫桑比克,我的故乡); Kumwanga,
“Farol da liberdade” (自由的灯塔); Rafaei Bobo,
“Foi o que disse mamã” (母亲的话); Xicalavito.

Nota final

Descobri estes poemas africanos em língua portuguesa, estreitamente associados às grandes correntes de descolonização pós-guerra, através de uma pesquisa sobre Gē Bǎoquán, um dos mais importantes estudiosos das línguas e culturas eslavas da República Popular da China. 

Numa época em que a recém-fundada República Popular se inclinou para a URSS, tornando-se forte concorrente no campo de influências políticas, Gē, antes de ser alvo de uma “censura das massas” durante a Revolução Cultural, foi contratado a elaborar, como acabámos de ver, várias antologias de poesia africana de expressão portuguesa, traduzidas para mandarim.

Não há dúvida que estas traduções para chinês têm hoje elevado valor histórico e linguístico, apesar do peso ideológico. 

Em 1977, sete meses depois de terminada a Revolução Cultural, o grande promotor chinês de Hans Christian Andersen, Yè Jūnjiàn, fez uma versão dos poemas “Se me quiseres conhecer” (假如你想认识我) de Noémia de Sousa, “Vem contar-me o teu destino, irmão” (1965, 诗), de Jorge Rebelo, e ainda um poema de Armando Guebuza que, à semelhança de muitas outras traduções perderam-se por aí, sendo-me impossível encontrar em tão curto espaço de tempo.

Estes três poemas e a nota de tradução foram incluídos numa antologia preparada em 1979 por Yè, que também foi investigador da Universidade de Cambridge. Imagine-se o significado de tamanha homenagem e reconhecimento do Estado chinês em plena reforma política…

Em 2010, estes textos são novamente publicados numa antologia completa das traduções de Yè, mais precisamente no seu décimo primeiro volume, com edição da Tsinghua University Press. Gē e Yè são ambos reconhecidos escritores, além de tradutores. Tanto os seus trabalhos de poesia como as versões originais são valorizados.

Pode parecer que estas traduções caíram no esquecimento entre o público chinês, mas a verdade é que ainda são frequentemente mencionadas ou evocadas nos estudos sino-africanos. O portal noticioso “The Paper” publicou vários artigos, elaborados num contexto académico, como é caso do artigo que referi anteriormente, “Movimento literário afro-asiático e a história da tradução da literatura africana”, assinado por Yuán Míngqīng e Zhāng Lìfāng.

Outro exemplo: “A África como método” de Niè Pǐngé (anglicista), Yú Àngrán (Universidade Tsinghua) e Yáo Fēng (anglicista que traduziu uma biografia de Georges Bataille para o mandarim, e não se confundir com o poeta chinês que vive em Macau). Há ainda muitos outros exemplos como este.

A título de conclusão, regresso às duas investigadoras, Yuán e Lìfāng, que disseram que, no contexto geopolítica de hoje, a literatura parece já não ser prioridade ou mesmo um instrumento de soft power urgente da China na África de língua portuguesa, como podemos constatar através das várias antologias de poesia revolucionária. Hoje, parece que a tradução literária afro-chinesa ou sino-africana se baseia mais no lucro e menos na vontade política. Muitas obras de valor estão ainda à espera de traduções de qualidade. 

Foi Shevchenko, Gē Bǎoquán e sobretudo uma questão levantada pela artista polaca Marta Sala – “Como é que lês tão pouca literatura africana?” – que me trouxeram até aqui.

 

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