a china além da china
destaques política e sociedade

A TDM, Ren Hang e o patriotismo

April 2, 2021

A TDM, Ren Hang e o patriotismo

Changchun/ Catarina Domingues

Lembro-me de ouvir falar pela primeira vez das novas orientações (patrióticas) transmitidas aos jornalistas da Teledifusão de Macau (TDM) a meio da tarde de 10 de Março. Não sei se era um dia de sol, se almocei fora, se saí para fazer alguma entrevista. Na minha agenda, que abro agora nesse dia para encontrar pistas, fiz uma lista de pequenas tarefas. Tenho também traduzido para português um poema do fotógrafo chinês Ren Hang (任航), escrito um mês antes de se atirar do 28.º andar de um edifício de Pequim. “Olho para ti/ainda assim tenho medo que desapareças/abraço-te/ainda com medo que desapareças/Não se ausentam a lua e o sol/ pode o dia estar encoberto/podes levantar a cabeça e não os ver/ mas sabes que não desaparecem/ – e eu só tenho isso para me consolar”.
Quando em 2017 fui passar duas semanas a Changchun, capital da província chinesa de Jilin, tinha poucas referências desta cidade industrial, de uma palidez sempre triste, plúmbea, meio decadente, que eu percorria horas a fio todos os dias a pé depois das aulas de mandarim. Com mais de sete milhões de habitantes, Changchun é conhecida por ser o berço da indústria automóvel chinesa e a antiga capital do estado-fantoche japonês de Manchukuo (1932 e 1945). Para mim, representa a essência de Ren Hang, nascido num subúrbio desta gigante metrópole do nordeste da China.
Com a minha professora de mandarim, Luan Shi Meng (栾诗梦) – “luan” é apelido, também coreutéria, árvore nativa asiática; “shi” quer dizer poema, “meng” sonho – passeei várias vezes durante esses dias pela pequena floresta de bétulas brancas do Parque de Nanhu, onde filmámos e lemos alguns dos minimalistas poemas de Ren Hang, que só queria ser um comum entre os comuns, mas cujo trabalho fotográfico, censurado no país (embora apreciado por muitos), tenha feito dele um nome de relevo da fotografia chinesa.
Ren precisava de se sentir emocionalmente ligado ao que fazia e, talvez por isso, fotografasse sobretudo amigos próximos. Deu voz aos jovens, à sexualidade, à comunidade LGBT e fê-lo através de composições encenadas, saturadas, viscerais, imagens de lábios vermelhos, de múltiplas mãos a tocar corpos sempre nus, contorcidos, amontoados, de um homem a colocar batom no pénis, de outros dois a fazerem sexo, de uma mulher nua – a mãe – a carregar dois patos brancos, a segurar e a beijar a cabeça de um porco….
Ren era visto como um transgressor. Lutou contra a censura e chegou a ser detido várias vezes. Não resistiu a uma depressão crónica e, aos 29 anos, tirou a própria vida. “Não consigo mesmo entender/ como é que tantas pessoas/ gostam de escalar montanhas/ Se eu o fizesse/ seria apenas/ para subir ao topo/ e atirar-me.”
Numa entrevista que deu à Vice (Japão), em 2013, disse: “Quanto mais sou controlado no meu país, mais eu quero que o meu país me acolha e me aceite por aquilo que sou e faço. (…) Eu amo a China e gosto de fotografar o povo chinês.”
Bem, mas eu ia falar mesmo sobre quê?

 

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *