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“Em Clarice concentram-se todas as aflições do nosso género”

December 16, 2020

“Em Clarice concentram-se todas as aflições do nosso género”

A tradutora de Clarice Lispector para chinês, Min Xuefei, teve de encontrar uma nova linguagem para conseguir comunicar a obra da autora de A Hora da Estrela. No centenário de Clarice, prepara-se na China a edição de mais dois livros com a marca destas duas mulheres: Laços de Família e A Paixão Segundo G.H.

“Com a licença poética que me cabe para este texto, afirmo que – após anos de pesquisa para a produção de um documentário – concluí que Clarice Lispector nasceu no Brasil. ‘Essa história de nascer em uma aldeia na Ucrânia é puro charme’. Ouvi essa afirmação, em tom de brincadeira, de um de seus amigos jornalistas que trabalhou com ela no Jornal do Brasil. Mas não me condenem por não respeitar a exatidão geográfica e os registros biográficos: a nossa mais popular escritora, apesar da sua origem russa, era tão brasileira quanto qualquer um de nós!”. As palavras são de um artigo de Taciana Oliveira, realizadora do documentário A Descoberta do Mundo, sobre a vida e obra de Clarice Lispector, e sintetizam bem o sentimento de muito leitores, não apenas brasileiros mas de língua portuguesa: Clarice é nós.
Enigmática, indecifrável, Clarice. Que mistérios tem Clarice?, canta Caetano Veloso na letra de José Carlos Capinan. No centenário da autora nascida numa pequena cidade do que hoje é a Ucrânia, esta continua a ser uma pergunta pertinente. Os seus livros celebram-se agora um pouco por toda a parte. Se o biógrafo e tradutor Benjamin Moser é como que um embaixador de Clarice para a língua inglesa, no mundo que fala chinês essa responsabilidade também tem nome: Min Xuefei, tradutora de Clarice Lispector e professora associada do Departamento de Espanhol e Português do Instituto de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim. Min Xuefei, também directora do Curso de Língua e Literatura Portuguesa daquela instituição, começou por estudar espanhol em Pequim, antes de se lançar num doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa na Universidade de Coimbra. Foi ali que se apaixonou pela obra de Clarice Lispector, a quem dedicou a sua tese e, mais importante, um sem fim de horas passadas a verter para chinês as palavras que fizeram com que mudasse por completo a ideia que tinha do labor da tradução.
Min Xuefei participou já este mês em duas sessões de tributo a Clarice Lispector, organizadas pela Universidade de Macau e pela Universidade de Oxford. Está presentemente a traduzir A Paixão Segundo G.H. e a escrever um ensaio académico sobre a mulher dos olhos inesquecíveis.

Celebram-se 100 anos de Clarice Lispector. Participou em alguma actividade na China Continental relacionada com esta data?
Na China não. A editora gostaria de fazer alguns eventos depois de sair o livro Laços de Família. Planeou-se a publicação desta colectânea de contos para este ano, 2020, mas foi adiada uns meses e sairá no próximo ano. Creio que, quando o livro sair, vamos fazer uns eventos juntos para comemorar o centenário da escritora.

Acaba por ser a principal responsável por apresentar Clarice Lispector aos leitores chineses. Sente esse peso?
Não sei muito bem como explicar. Responsabilidade, sim, mas acho que deveria ser uma tarefa e uma responsabilidade junto com outros tradutores. Clarice Lispector é uma escritora com uma obra vasta, escreveu muitos romances. Eu traduzi Felicidade Clandestina, Laços de Família, A Hora da Estrela e agora estou também a traduzir A Paixão Segundo G.H., mas acho que depois só vou traduzir mais a Água Viva, e há outras obras para traduzir para o chinês. Então, gostaria que outros tradutores também pudessem participar, mas Clarice Lispector é muito difícil. Acho vai ser um grande desafio para os jovens tradutores, vamos ver. Estou a formar tradutores, a ministrar uma aula de tradução na minha universidade e a ver se há jovens qualificados para traduzir Lispector que eu possa recomendar às editoras, para um dia poderem sair as obras completas desta escritora [em chinês].

Clarice Lispector/ Rio de Janeiro, 1964. Fotógrafo não identificado. Arquivo Lêdo Ivo / Acervo Instituto Moreira Salles

Lembra-se de como conheceu a escrita de Clarice Lispector?
Já não me lembro muito bem em que dia li Clarice pela primeira vez, mas o conto foi o primeiro da colectânea Felicidade Clandestina. Naquele momento achei-a uma escritora fantástica mas muito difícil. Pensei também: ‘É muito difícil de traduzir para chinês, não sei se o público chinês aceita esta escritora’. Nessa altura, o editor Peng Lun queria juntar Felicidade Clandestina e Laços de Família, porque comprara os direitos de autor das duas colectâneas ao mesmo tempo, mas convenci-o a separá-las. Uma colectânea já é muito intensa, não sei se os leitores chineses aceitariam que tivéssemos tantos textos muito intensos num só livro, e ele aceitou. Felicidade Clandestina saiu em 2018 e Laços de Família vai sair no próximo ano. Acontece que foi A Hora da Estrela, a primeira obra clariceana traduzida para chinês, porque naquela altura eu estava em Coimbra a fazer o doutoramento e tive aulas com a professora Aparecida Ribeiro. Então, para fazer um trabalho da disciplina, fiz uma análise de A Hora da Estrela. Para mim, a tradução de A Hora da Estrela correu melhor que a dos contos. Acabei a tradução num mês e falei com o editor. Disse-lhe: ‘Acho que tu deves comprar este livro. Vamos publicar esta novela antes dos contos, porque o público chinês aceitará melhor este romance do que os contos.’ Esta novela é a única obra clariceana que tem um começo, um meio e um grande final. Eu achava que o público chinês aceitaria melhor, porque talvez prestasse mais atenção ao enredo.

E tinha razão? Recorda-se como foi recebida Clarice pelos leitores chineses?
A publicação de A Hora da Estrela teve bastante sucesso, muitos leitores começaram a gostar muito de Clarice. Acho que ela está a ganhar cada vez mais leitores na China, incluindo celebridades, pessoas famosas que recomendaram Clarice em várias ocasiões. Por exemplo, Zhang Yueran, que acho a melhor escritora jovem da China, disse numa entrevista que A Hora da Estrela é o livro que mais a influenciou nos últimos dez anos. A banda Wu Tiao Ren, banda de rock popular na China, também recomendou A Hora da Estrela no Weibo. Então, posso dizer que Clarice Lispector está bem aceite na China.

A hora da Estrela

Referiu há pouco que é muito difícil traduzir Clarice. O que é que a torna diferente de outros autores?
Em primeiro lugar, seja nos contos ou nos romances de Clarice Lispector, normalmente não há qualquer acontecimento linear. Segundo, o estilo de Clarice é muito particular, usa técnicas de adjectivação, mas por fim encontrei soluções para isto. Desisti da tradução tradicional, da tradução literal. Acho que é mais importante construir uma imagem nova no contexto chinês, para os leitores chineses. Clarice faz sentido no contexto da língua portuguesa, mas o público chinês não consegue aceitar uma escritora que só faz sentido no contexto da língua portuguesa. Então, para introduzi-la temos de inventar uma nova imagem para Clarice Lispector. Traduzir Clarice Lispector mudou totalmente a minha ideia sobre tradução, porque a tradução tradicional já não funciona. Decidi construir uma linguagem própria, acho que se Clarice escrevesse em chinês deveria ser deste modo. É a minha maneira de, digamos, converter Clarice em chinesa.

Acabou por decidir fazer a sua tese de doutoramento à volta da autora, Diluindo Fronteiras: Mal, Amor, Morte, Corpo e Mente em Clarice Lispector. Fale-me deste trabalho.
Para dizer a verdade, a tese foi só para conseguir o título de doutora, muito importante para eu sobreviver numa instituição académica. Falta muito para esta tese ser perfeita, mas ajudou-me muito na tradução. A investigação e a tradução complementam-se mutuamente. Este é um trabalho sobre três romances: Perto do Coração Selvagem, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e A Hora da Estrela. A partir de três conceitos: o mal, o amor e a morte. Para mim, o que me atrai mais em Clarice Lispector é a eliminação de dicotomias, ela consegue diluir as fronteiras entre bem e mal, ódio e amor, vida e morte. Então, podemos ler estes três livros como a vida inteira de uma mulher. (…) Todos estes livros servem para despertar a consciência do ‘eu’ de uma mulher. É muito difícil explicar isto, não falo português há muito tempo devido ao covid-19. Mas para dizer a verdade é um trabalho que fiz em pouco tempo, falta-lhe muito para ser perfeito. Estou a elaborar um tratado académico sobre Clarice Lispector em chinês, acho que em chinês posso ter mais fluidez para demonstrar melhor as minhas ideias.

Como vê Clarice enquanto mulher, para lá da escritora?
Gosto muito de Clarice enquanto mulher, é fantástica. Foi sem dúvida uma boa mãe. Acho que tinha pensado em ser também uma boa esposa mas não teve sucesso. Então, ela é o reflexo da vida de muitas mulheres actuais e neste sentido gosto muito dela. Acho que em Clarice concentram-se todas as aflições do nosso género. Mas ela conseguiu convertê-las em tesouros psicológicos, em tesouros de alma. Por isso devoto a minha tradução a Clarice.

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