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Macau e as fronteiras que ainda existem

January 14, 2021

Macau e as fronteiras que ainda existem

Ni Kuang, célebre escritor de ficção científica de Hong Kong e natural de Xangai, tem dito repetidamente – tanto nos mais antigos talk shows de televisão como nas mais recentes palestras em Hong Kong – que existem duas coisas que não devem nem podem ser alteradas: a religião e a posição política.
Pessoalmente, não sei se me consigo posicionar de um lado ou de outro em qualquer dos temas, uma vez que a indecisão é parte indissociável da minha vida quotidiana. Digamos que é algo que considero como base para a inspiração criativa. Escolher um lado ou outro é o mesmo que não escolher nenhum. O filósofo alemão Peter Sloterdijk tinha uma resposta bem mais sábia para este tipo de questões: numa entrevista à SRF (Rádio e Televisão da Suíça germanófona) disse que escolheria o seu próprio lado.
Na minha longínqua Macau, aprendi que não se deve tomar uma posição nem dar uma opinião. “O silêncio é de ouro”. É verdade também que quando aí morava movimentava-me num círculo muito pequeno. Porém, e paradoxalmente, agora que já não vivo em Macau, apercebo-me que surgem constantemente novas ideias – e naturalmente múltiplas opiniões – transmitidas formal ou informalmente e a uma velocidade muito superior à de antigamente. Talvez isto não seja propriamente um paradoxo, mas deve-se apenas ao facto de eu estar mais atento ao que se passa além do meu restrito e antigo círculo de vida macaense.
Quanto mais vejo as pessoas da minha terra falarem livremente, mais valorizo a liberdade de expressão, cujo exercício em Macau me parece ainda precário. No entanto, posiciono-me sempre – e ainda – do lado dos “educados”, “cautelosos” ou “respeitadores”, ou seja, daqueles que têm medo de ofender os homens no poder. Apercebo-me que, na realidade, quando a liberdade parece ameaçada, prefiro não me comprometer.
Eu cresci em Macau ainda durante a época colonial (ou “sob administração portuguesa”, como se prefere dizer no universo lusófono) e tornei-me adulto na Região Administrativa Especial da República Popular da China (adulto no sentido jurídico, pois ser-se adulto é uma atitude, como dizia Jacques Brel: “Ça n’existe pas les adultes, c’est une attitude”).
Portanto, eu vivo intensamente em contradição, ou seja, defendo a existência de Macau enquanto entidade política, concretizada pelas suas fronteiras físicas, embora, ao mesmo tempo, não aprecie o lado perverso do ser humano que se aproveita da ideia de fronteiras políticas físicas para pôr de lado os desfavorecidos. Talvez o mais cantado verso de John Lennon e Yoko Ono “Imagine there’s no countries” seja de facto válido apenas na nossa imaginação.
Ainda em relação a Macau, sinto uma enorme frustração ao aperceber-me de como a cidade se mantém invisível no que diz respeito a aspectos que me são muito caros, seja ao nível académico, seja na imprensa internacional (excluindo, claro, os mundos das línguas chinesa, inglesa e portuguesa).
Por exemplo, aqui na Alemanha, Macau não é mais do que uma espécie de vazio geográfico ou, no máximo, um souvenir B1G1F (compre um, leve dois), ao aparecer permanentemente associada a Hong Kong nos media germanófonos. Felizmente, os “lusitanistas” – académicos dos estudos portugueses – alemães valorizam Macau bem mais em comparação com os sinólogos germanófonos que não poucas vezes ignoram a existência desta terra. O sinólogo Roderich Ptak será certamente a excepção à regra.

Foto: Carlos Gonçalves

Esta frustração de sentir que sou proveniente de um distante e desconhecido império dos casinos foi ocorrendo paralelamente à decisão que tomei de deixar de ler a comunicação social. E emergindo num mundo sem notícias, a verdade é que me sentia aliviado por estar distante de tanta dor, embora, ao mesmo tempo, me sentisse bastante desligado do resto do mundo.
Sinto que mesmo que volte às notícias, a minha posição política, quase religiosa, não mudará: as pessoas expressam-se numa língua e esta língua controla e conduz pensamentos, e os pensamentos, por sua vez, controlam e conduzem esta língua. Eu sou meramente um discípulo da língua humana.
Olhando de longe para Macau: A minha identidade política enquanto “residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau” e portador do passaporte deste território torna as coisas mais complicadas e mais fáceis ao mesmo tempo. Mais complicadas ao nível identitário, já que Macau pertence à “Greater China” com uma imensidão cultural e linguística. Nacionalismos e regionalismos são aspectos que me incomodam bastante, seja no seio desta tensa “Grande China”, seja noutras regiões, como é o caso desta mais ou menos integrada Europa. Já quando digo mais fáceis é no sentido de que existe essa fronteira política que (ainda) permite uma diversidade de opiniões, que eu diria serem mais facilmente recebidas num contexto longínquo como, por exemplo, aqui na Europa.
Creio que os antigos colonizadores britânicos e sobretudo portugueses tiveram sucesso em criar, nos últimos anos da sua presença em Hong Kong e Macau, respectivamente, as identidades pós-coloniais, como forma de perpetuar a influência dos seus impérios. Embora ambas as regiões administrativas especiais vivam hoje duas realidades muito distintas, os progressos e conflitos nestas duas antigas colónias levam-me a imaginar o fim da existência da minha Macau. É desta forma que vivo antecipadamente uma futura nostalgia de uma Macau, que ainda existe.
O que acontecerá depois de 2049? Não é uma questão política – nem teria capacidade para o ser. É uma questão emocional. A infância é-me algo muito marcante: lembro-me que, da primeira vez que soube que em 1999 seria o ano da transferência de Macau, perguntei de forma inocente ao meu pai, “Todas as casas aqui serão demolidas e depois reconstruídas? E o McDonald’s, continuará a existir?”
E o que vai acontecer ao espaço que habitamos e que tem tudo o que hoje nos é essencial ao dia-a-dia, se vivermos para lá de 2049? Mesmo que eu não viva além de 2049 ou que não volte a Macau, o que é que vai acontecer à língua cantonense, a minha alma? E ao português, a alma de muitos que admiro?
Gosto de dizer que sou uma pessoa paradoxal porque o mundo em si é paradoxal. Num mundo só meu – e fantástico – há dias em que as fronteiras políticas não são mais do que apenas vantagens – isto quando posso aproveitar essas vantagens. Outros dias, ao aperceber-me das desvantagens, imagino um mundo sem fronteiras.
Sei que falo do alto da minha situação privilegiada: tenho bilhete de identidade de Macau e todas as vantagens a ele associadas. Ao mesmo tempo, consigo imaginar como seria se eu não tivesse esse privilégio. Vivo em Berlim como estrangeiro e isso permite-me olhar para as coisas de outra perspectiva.
Macau não seria nada sem as fronteiras físicas que ainda existem. Talvez os luso-descendentes tenham razão ao se denominarem exclusivamente “macaenses” e nós “chineses de Macau”, porque Macau não está no nosso sangue. Macau é meramente a materialização do nosso imaginário.
Faltam neste momento apenas 29 anos para ter saudades do nosso presente.

Com toda a inocência.

Um Comentário
  1. Rodrigo Macedo

    Gostei! Bem escrito e interessante.

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