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“A verdadeira história de Ah Q” (parte II)

December 9, 2020
(em colaboração com Mathilde Denison Cheong)

“A verdadeira história de Ah Q” (parte II)

Capa de João da Câmara Leme (1930-1983)

No artigo anterior, escrevemos sobre a origem e as razões que poderão ter motivado o escritor Lǔ Xùn (1881-1936) a escolher o nome “A(h)-Q” para baptizar o protagonista da obra “A Verdadeira História de Ah Q” (tradução portuguesa de José Manuel Calafate). Se as nossas explicações vieram levantar um pouco o véu sobre o mistério à volta deste célebre nome, a verdade é que a pronúncia permanece ainda um enigma. Nesta segunda parte, tentamos encontrar algumas pistas que nos permitem comparar traduções que são feitas um pouco por todo o mundo.
Como avançámos anteriormente, parece-nos muito improvável que Lǔ Xùn tenha escolhido o nome “A(h)-Q” para que este fosse pronunciado à inglesa. Nem vale a pena explicar que, à época, apenas uma pequena elite intelectual chinesa tinha conhecimentos do alfabeto inglês. No tempo de Lǔ Xùn coexistiam, sob a influência de várias línguas europeias, diferentes métodos de transcrição fonética dos ideogramas em letras latinas. Lǔ Xùn poderia, com um outro sistema de transcrição da sua versão do chinês, ter chamado o seu herói de “A(h)-K”, por exemplo.
No entanto, de forma geral, quando nos referimos ao romance, o “Q”* é curiosamente pronunciado em inglês, seja em mandarim ou em cantonense. E olhar para as adaptações cinematográficas desta peça literária confere um carácter ainda mais curioso à pronúncia. Tanto a produção de Hong Kong de 1958, na qual o papel de “A(h)-Q” é desempenhado por um actor muito conhecido de origem manchu, Kwan Shan (1933-2012), como na segunda adaptação chinesa que data dos anos 1980, os dois “A(h)-Q” tornaram-se conhecidos em mandarim como “A-Gu[ì]” (segundo o sistema pinyin e no mandarim padrão). Aqui só uma nota: a versão cinematográfica de 1958, embora de Hong Kong, foi produzida em mandarim, numa época em que as produções em mandarim ainda ocupavam um lugar vital na indústria da ex-colónia britânica.
O facto da pronúncia inglesa ser mais frequentemente adoptada pode explicar-se com o interesse crescente do inglês na Ásia confucionista – e parece-nos que este é o caso no mundo em geral.  Não deixa de ser curioso que certas traduções até reproduzam a pronúncia inglesa com as próprias escritas. Na tradução coreana, por exemplo, o nome do personagem não é escrito com a letra latina “Q” mas com uma composição dos dois caracteres hangul 아큐 (diz-se: “A-Quio”), a fim de transcrever este nome. Curiosa e paradoxalmente, entre as línguas da Ásia confucionista, apenas na tradução vietnamita – língua hoje completamente romanizada – o nome do herói é pronunciado da forma como Lǔ Xùn esperava. De facto, a letra “Q” em vietnamita pronuncia-se “kuei”.
Ainda mais uma curiosidade: Em cuengh, uma das línguas minoritárias da China, a letra “Q” não tem pronúncia e serve meramente para indicar uma variação de tom.
O uso da pronúncia inglesa para o “Q”, na China ou mesmo na Ásia confucionista, não parece que seja muito recente. Numa tradução russa da obra, do ano de 1971, o nome do personagem é, à semelhança da tradução coreana, transcrito foneticamente do inglês no alfabeto cirílico. O romance de Lǔ Xùn foi introduzido muito cedo na Europa e foi traduzido para a língua russa por um soldado russo em 1925. Nessa tradução, prefaciada pelo próprio Lǔ Xùn, o nome do personagem é curiosamente traduzido como “А-Кей” (A-Quei), que coincide com a pronúncia da letra inglesa ‘K’.
No ano seguinte, George Kin Leung traduziu a história para inglês. Esta tradução seria revista por Lǔ Xùn, que lhe atribuiu o título “The True Story of Ah Q”. Em 1926, um estudante chinês enviou a tradução francesa “La vie de Ah Gui” a Romain Roland. Quatro anos depois, E. H. F. Mills propôs uma nova versão inglesa, intitulada de “The Tragedy of Ah Qui”. Entre os títulos das traduções aqui referidas, duas parecem mais próximas no que diz respeito à intenção do escritor.
Na versão alemã do sinólogo Wolgang Kubin, foi traduzido o nome de forma livre, “Die wahre Geschichte des Herrn Jedermann [A verdadeira história do Senhor Todos os Homens, numa tradução livre]”, aproximando-se, assim, da hipótese que formulámos acima, de que o nome de “A(h)-Q” foi escolhido por Lǔ Xùn para enfatizar que esta é a história de um homem comum, o que, aliás, corresponde ao espírito da sua criação literária.
Neste artigo tentámos apresentar uma breve panorâmica de algumas traduções do nome “A(h)-Q”, em diferentes línguas asiáticas e europeias. Essa interpretação leva-nos a avançar a ideia de que Lǔ Xùn escolheu “A(h)-Q” como forma de abreviar o nome “A(h)-Quei”. Parece-nos também que o uso da letra “Q” não é a única possibilidade de tradução e que o nome foi muitas vezes transcrito foneticamente nas várias traduções devido a uma má compreensão.
Não temos uma resposta definitiva para explicar como Lǔ Xùn compreendia o nome do seu herói e como entendia que este deveria ser pronunciado pelos seus leitores. Estas pesquisas permitem, de qualquer maneira, perceber que as diversas possibilidades aqui expostas vão além da simples conclusão de que Lǔ Xùn, um dos mais proeminentes vultos da literatura chinesa moderna, optou por uma letra inglesa.


*O uso da pronúncia inglesa é particularmente curioso quando pensamos que a letra Q é utilizada frequentemente na gíria cantonense, como partícula para substituir um palavrão.

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