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“A verdadeira história de Ah Q”: Por que se pronuncia o “Q” em inglês? (parte I)

October 20, 2020
(com Mathilde Denison Cheong)

“A verdadeira história de Ah Q”: Por que se pronuncia o “Q” em inglês? (parte I)

Capa de João da Câmara Leme (1930-1983)

Como Lǔ Xùn (‘Lou Son’ em cantonense, ou ainda ‘Lu Shin’ ou ‘Lu Sin’ nas várias traduções lusófonas), havia já ironicamente previsto na sua obra “A Verdadeira História de Ah Q” (tradução portuguesa de José Manuel Calafate)*, uma série de investigadores, ávidos de conhecimento, ficaram presos ao nome do protagonista.
E aqui estamos nós os dois, presos, a preparar dois artigos – este é o primeiro – sobre este nome que entretanto se tornou mundialmente conhecido: “A(h) Q”.
Nesta primeira parte vamos investigar a origem e os motivos da escolha do nome por Lǔ Xùn (1881-1936), um dos fundadores da literatura moderna chinesa. A segunda parte foca-se, por sua vez, na pronúncia deste nome e nas traduções feitas em línguas da Ásia oriental e da Europa.
Na literatura europeia, quando queremos esconder a identidade de uma pessoa, não é raro usarmos a primeira letra do nome próprio da pessoa em causa. Como exemplo notável desta prática, vem-nos à cabeça o autor russo Dostoiévski. No mundo asiático, vemos aparecer este método – embora com o alfabeto latino – aquando da modernização do Japão, cuja influência foi enorme sobre os intelectuais chineses.
Sendo o japonês uma língua com base em duas espécies de sistemas de escrita – dois sistemas paralelos de silabário (os “kana”) e um sistema de ideogramas (os caracteres de origem sínica, os “kanji”), as possibilidades de identificar uma pessoa com base na primeira “letra” – isto é, praticamente a primeira sílaba – é maior, de forma a simplificar. No sistema “kanas”, referimo-nos, por exemplo, ao senhor ‘なNa’ ou à senhora ‘タTa’. Ainda por cima, é de notar que os nomes japoneses são escritos com os “kanji”, caracteres de origem sínica. Este método, como podemos facilmente compreender, perde a sua utilidade nas línguas sínicas, línguas nas quais basta em muitos casos apenas um carácter para nos informarmos sobre o nome de uma pessoa, apesar do mesmo apelido ser usado por milhões de pessoas. Por exemplo, no caso de Mathilde usaríamos apenas um M., e no caso do senhor 張 (Cheong) permaneceria senhor 張 (Cheong).
Por outro lado, sob a influência das literaturas dos grandes poderes da época – aliás “literatura” é um dos muitos novos conceitos ocidentais que entraram nas culturas da Ásia confucionista -, não é surpreendente observar o encanto crescente com as letras latinas nesta parte da Ásia. Este facto explica, em parte, o uso desta escrita europeia por Lǔ Xùn.
Aliás, sabemos que, a meio de grandes convulsões culturais, Lǔ Xùn tinha julgado necessário o abandono dos caracteres sínicos a favor de uma escrita alfabética, como forma de modernizar a China. Fica então excluída a ideia de que a letra “Q” tivesse sido escolhida pelo autor para “esconder” a identidade de uma nova personagem.
Em contrapartida, parece-nos que Lǔ Xùn tinha, com esta letra, a intenção de a empregar como se fosse um novo carácter. Aliás, na história, ao autor diz não ter a certeza com qual carácter se escreve o nome, sabendo apenas como é que este se pronuncia.
Esta ideia leva-nos a compreender a letra “Q” como se tratasse de um novo “ideograma”, ao invés de uma simples letra que lá está para simplesmente transcrever um carácter chinês, que, como já dissemos, Lǔ Xùn não sabia qual é. Chamamos a atenção ainda para o facto de os caracteres sínicos serem, na sua maioria, homónimos, mas com várias formas de escrita para transmitir diferentes significados.
O que também pode esclarecer o uso do “Q” são as lutas de Lǔ Xùn que, aspirando à modernização do país, defendia a criação de um “novo” chinês que permitisse à escrita aproximar-se da língua falada, isto é, o mandarim, embora o próprio Lǔ Xùn falasse uma outra língua sínica como língua materna.
De facto, quando o autor escreveu o romance, em 1921, nascia na China um novo estilo literário do qual Lǔ Xùn ficaria reconhecido como um dos seus pais fundadores. Este estilo, fruto de uma revolução literária que adopta uma língua oral e informal, acompanhava tentativas de democratização – ou melhor, de abandono – da antiga língua escrita, o chinês clássico, até então reservado principalmente à elite.
Isto pode dizer-nos que as razões da escolha deste nome estão justamente na procura daquela letra a partir do uso popular da língua.
Ainda hoje esta prática é frequente em cantonense no sul da China continental, em Hong Kong e em Macau. É muito comum encontrar pessoas do mundo sinófono que são apelidadas com um “A(h)-” seguido por um dos dois caracteres dos seus nomes próprios. Ademais, no passado, não era raro encontrar alguém de uma classe baixa, cujo nome verdadeiro fosse mesmo composto por este “A(h) -” seguido de um outro carácter. Mesmo parecendo uma prática mais frequente em cantonense, não se limite só a esta língua.
Na literatura singapuriana ou mesmo na literatura colonial portuguesa (Henrique de Senna Fernandes ou Maria Ondina Braga, por exemplo), vemos às vezes o aparecimento de uma forma que explica ao leitor sobre o estatuto hierárquico inferior da pessoa a quem se endereça. A excepção está, por exemplo, num cantonense informal em que o nome da pessoa é substituído por um título honorífico. Por exemplo, “A(h)-Sir”, que aqui se trata de um anglicismo, significa “Senhor Professor” ou “Senhor Polícia”.
Estas práticas permanecem muitas vezes reservadas ao uso popular da língua e estão associadas, quase sempre, a um discurso informal. No entanto, isto mostra bastante ironicamente que mesmo depois de mais um século de esforços de “modernização” da língua, a língua chinesa ou as línguas sínicas não se libertaram de uma série de práticas hierárquicas.
As razões da escolha do nome de “A(h)-Q” permanecem um mistério. Ainda assim, parece ter sido bem uma boa escolha. Como explicado no livro, os dois ideogramas entre os quais Lǔ Xùn “hesita” para a escrita em chinês do nome da sua personagem são “貴” ou “桂”, cujas pronúncias no dialecto do escritor são idênticas: “kuê” e “kuê”.
Os nossos conhecimentos deste dialecto são reduzidos. Porém, quando pensamos no cantonense, podemos, em contraste, especular que este nome “A(h)-Quei” – como assim ficou numa das primeiras traduções ocidentais do livro – faz referência a alguém em geral. É pelo menos o que nos indica a expressão cantonense “Não é preciso perguntar ao A-Kuai!”, que significa “Está certíssimo! Não é nada preciso perguntar a alguém!”
O facto da pronúncia dos dois caracteres aqui mencionados ser idêntica, tanto no dialecto do escritor como em mandarim (há, na realidade, pouquíssimas variantes das línguas sínicas com pronúncias diferentes), leva-nos a crer que não seria muito provável que Lǔ Xùn recorresse a esta letra latina “Q” com a intenção de usar a sua pronúncia inglesa, embora hoje, em toda a Ásia oriental – sobretudo em cantonense e em mandarim – pronunciemos de forma inglesa esta letra Q com tanto prazer.


* Com o objectivo de facilitar as pesquisas que os nossos leitores poderão fazer nas diferentes traduções lusófonas, gostaríamos de notar que nesta tradução de José Manuel Calafate, do italiano para o português, o nome do escritor está transcrito segundo uma velha romanização do mandarim, Lu Hsün. Existem igualmente várias traduções brasileiras e portuguesas de outras obras do escritor nas quais este nome está traduzido como Lu Shin ou ainda Lu Sin, que nos parecem romanizações mais próximas do dialecto da sua terra natal, Shàoxīng, ou, como se diz na antiga romanização, Shaohsing.

 ** O chinês da época de Lǔ Xùn era ainda uma mistura entre o velho mandarim da época e o dialecto local, naturalmente com empréstimos linguísticos bastantes frequentes de palavras japonesas.

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