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“Daqui a 15 anos, o cantonês não vai ser mais a língua dominante em Macau”

April 20, 2021

“Daqui a 15 anos, o cantonês não vai ser mais a língua dominante em Macau”

A crescente utilização do mandarim como língua principal no ensino está a relegar para um lugar incerto o cantonês, idioma dominante em Macau. O uso do mandarim nas salas de aulas não é imposto por lei, mas tem sido incentivado e materializado com a contratação de cada vez mais professores do outro lado da fronteira, diz Tong Choi Lan, linguista e presidente da Associação do Dialecto Yue de Macau.

Foto: Catarina Domingues

Tong Choi Lan não domina o siyi, mas cresceu a ouvir este dialecto da região de Jiangmen, no sul da província de Guangdong. Essa é a língua materna do pai e da mãe, a quem a académica sempre respondeu de volta no cantonês padrão, idioma dominante em Macau, de onde é natural. Diálogos como estes, feitos a duas línguas (ou dialectos), eram o trivial na cidade até há bem poucas décadas. “Entrávamos num café e encontrávamos uma mulher velha a falar um dos dialectos de Zhongshan com alguém mais jovem a responder em cantonês”, recorda a linguista, formada em literatura chinesa e especializada em dialectologia pela Universidade Nacional de Taiwan.
Mas numa altura em que conceitos como o ‘amor à pátria’ e a ‘unidade nacional’ são presença assídua nos discursos oficiais, o mandarim, língua falada por cerca de 70 por cento da população chinesa, vai ganhando terreno também na pequena região administrativa especial de Macau. Em 2017, mais de 20% dos professores de chinês já utilizavam o mandarim como língua veicular de ensino nas escolas primárias e secundárias locais. E a ideia, segundo revelou na altura a responsável pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude de Macau, era ampliar estes números. Insistir na “unificação na educação”, alerta agora Tong Choi Lan, representa não só uma ameaça à sobrevivência do cantonês, mas também à identidade cultural de uma cidade e população. “Na China, cada dialecto, cada língua, ou as chamadas de línguas minoritárias, estão a ser estranguladas, a desvanecer”, refere a professora em entrevista ao EXTRAMUROS.


Mandarim ou cantonês? Que língua usa nas suas aulas no Instituto Politécnico de Macau (IPM)?
As duas. Se tiver alunos do Continente chinês, mudo para mandarim. Hoje, por exemplo, tive duas turmas e dividi-as, uma em mandarim e outra em cantonês.

Dá mais aulas em que língua?
Mandarim.

Todos os alunos locais entendem mandarim?
A maior parte, mas alguns não são tão bons.

Vemos na liderança de várias instituições de ensino superior em Macau cada vez mais profissionais do Continente, cuja língua materna é o mandarim. Isto é um sinal da predominância do mandarim? Uma tendência?
Sim, é. Na Escola Superior de Línguas e Tradução do IPM, onde trabalho, nota-se que, à medida que o número de cursos aumenta, vão sendo recrutados mais professores, e a maior parte deles vem do Continente. Isto quer dizer que há cada vez menos professores cuja língua materna é o cantonês.

O cantonês está ameaçado?
Certamente. Está ameaçado, principalmente nos níveis de ensino primário e secundário. Na nossa escola, a Escola Superior de Línguas e Tradução, a base de ensino é o chinês; no caso do curso de tradução Chinês-Inglês, a língua veicular é o inglês e o chinês; se for Português-Chinês então é português e chinês. Mas este chinês é mandarim ou cantonês?

Mandarim?
Isso não está escrito em nenhum lado, mas sim, de certa maneira é entendido como sendo a norma. Tem havido casos em que alunos locais são chamados à atenção por não escreverem bem. É-lhes dito que têm de mudar a escrita e isto apenas por serem de Macau e de Hong Kong e por haver diferenças na língua. Há expressões que variam do mandarim para o cantonês. O estudante vai sentir-se confuso.
Se os estudantes vierem do Continente, ou mesmo que esteja apenas um aluno presente, o professor é suposto usar o mandarim e não cantonês. Por isso, a utilização do cantonês na sala de aula da Escola Superior de Línguas e Tradução está a reduzir para um nível muito limitado, quase nulo. Os estudantes locais não têm oportunidade de discutir conhecimentos ou expressar a opinião em cantonês e os alunos do Continente têm um cantonês de sobrevivência, apesar de às vezes terem passado quatro anos ou mais em Macau.

A Lei Básica, por exemplo, também define o chinês como língua oficial. Que chinês?
É bastante vago.

Houve a intenção de deixar em aberto a resposta?
[Houve a intenção] de não definir bem. Pode dizer-se que o chinês é o mandarim, a língua nacional, mas para alguém de Macau, quando usamos a palavra “chinês”, referimo-nos ao cantonês.

Sente-se pressionada a ensinar em Mandarim?
Não é feita essa exigência, mas tem de se mudar por causa dos alunos do Continente. Houve um ano em que tínhamos apenas dois alunos do continente – hoje não são tão poucos – e eu dei a aula em cantonês. No dia seguinte, um aluno foi à secretaria queixar-se.

Teve de mudar?
Sim.

Foto: Catarina Domingues

Disse que o mandarim está ameaçado sobretudo no ensino básico e secundário local. Está a formar-se uma nova geração numa língua que não é a dominante em Macau. Estamos a alterar a identidade de uma cultura e sociedade?
Sim. Tenho notado que, no cantonês, há uma série de palavras que estão a mudar. Dou-lhe um exemplo: em mandarim, na expressão ‘É assim?’ (是这样吧 – lê-se: ‘shì zhè yàng ba’), o último carácter é o ‘ba’ (吧), que pode indicar uma interrogação. Em cantonês, utilizaríamos a partícula interrogativa ‘gwaa’ (啩) e a expressão seria ‘hai gam gwaa’ (係噉啩). Tenho notado que, nos últimos anos, muitos estudantes de Macau substituem este ‘gwaa’ pelo ‘ba’, dizendo: ‘hai gam ba’. Há uns meses, apercebi-me que também os professores nativos de cantonês utilizam esta mesma expressão.

Estamos a criar um novo chinês?
Sim, estamos a criar um novo cantonês, mais semelhante ao mandarim.

Mas as línguas são plásticas, sofrem mudanças.
Sim, é muito comum. Acontece inicialmente entre os mais jovens. [As línguas] vão mudando a cada 10, 20 anos, são inseridas novas palavras, que não são utilizadas pelas gerações anteriores.
Penso que o que o governo está a fazer, principalmente ao nível da educação, querendo que os estudantes e as pessoas aprendam chinês em mandarim é, na realidade, um passo importante. O resultado vai ser que, daqui a 15 anos, o cantonês não vai ser mais a língua dominante em Macau, porque os mais jovens não vão saber como se expressar em cantonês. E uma vez que isto seja formalizado, será feita a mudança para mandarim. Quando a língua adquirir o estatuto de prestígio, sendo utilizada na educação, usada para pensar ou falar, então isso quer dizer que a tua língua mãe e outros dialectos estão a ser confinados, porque as pessoas só vão saber dizer o básico, que não é o suficiente para se expressarem de forma aprofundada.

Isso foi o que aconteceu a outras línguas na China.
Na China, cada dialecto, cada língua, ou as chamadas de línguas minoritárias, estão a ser estranguladas, a desvanecer.

Temos o caso da província de Guangdong. Vamos até às cidades de Cantão ou Zhuhai, por exemplo, e já se ouve muito mais mandarim. Migração, educação e imposição de legislação ajudaram a fomentar a utilização do mandarim.
A educação aqui tem um peso profundo e o governo está a centralizar o mandarim na educação. Há cerca de três anos a [então chamada] Direcção dos Serviços de Educação e Juventude expressou a intenção da língua veicular chinesa ser o mandarim. Eles só convidaram as escolas a fazê-lo, mas ao incentivar, alguém vai seguir. Também estão a contratar cada vez mais professores do interior da China para ensinar chinês. Isto vai fazer com que os estudantes se expressem apenas em mandarim. Foi o que aconteceu no Continente e também em Taiwan. Antes dos anos 1990, Taiwan democratizou-se, mas nas escolas os alunos tinham de falar mandarim e eram punidos se utilizassem dialecto.

Em termos de identidade cultural é dramático.
Existirá apenas uma língua. Aquilo que a ONU chama de diversidade de uma língua e cultura, os dialectos, as línguas locais são parte da cultura. Se se insistir na unificação na educação, a cultura local desaparece, extingue-se.

E as línguas revelam muito sobre a nossa forma de sermos e pensarmos.
Sim, claro. A forma de escrever estrutura a nossa forma de pensar.

Mesmo entre os falantes de mandarim ou cantonês, diria que existem diferenças baseadas na língua?
Sim, claro, em cantonês ou em dialectos. Em cantonês, por exemplo, temos imensas expressões que derivam da água. Estamos perto do mar e é a nossa metáfora. Por exemplo, se estamos a falar de uma pessoa fraca, dizemos: ‘hou seoi’, [que quer dizer literalmente ‘muita água’]. Por outro lado, se quiseres ter uma conversa comigo, podes dizer “vamos soprar alguma água” (‘ceoi seoi’). Há também algumas expressões que raramente são utilizadas hoje em dia e que contêm o carácter de água (水): 磅水 ‘bong seoi’ (pagar as contas) e 水腳 ‘seoi goek’ (despesas de viagem).

Já há muitas escolas em Macau a ensinar em mandarim?
Sim, muitas, tenho a ideia que mais de metade.


Para entender a crescente presença do mandarim na educação, o EXTRAMUROS contactou a Direcção dos Serviços de Educação e Desenvolvimento da Juventude de Macau (DSEDJ) a pedir dados actualizados sobre a língua de instrução nas escolas locais. Numa resposta por escrito, a DSEDJ sublinha que as instituições de ensino gozam de autonomia pedagógica e que, por isso, o governo “não obriga as escolas a adoptarem o mandarim como língua veicular do ensino chinês ou de outras disciplinas”. “Mesmo em escolas particulares, existem aulas ministradas em mandarim e cantonês, sendo que não é fácil de as classificar”.
Ainda segundo esta direcção, a legislação para o ensino não superior determina que as instituições públicas devem adoptar uma das línguas oficiais (chinês ou português) como língua veicular. As escolas particulares que optam por outra língua de instrução “devem proporcionar aos alunos a oportunidade de aprenderem, pelo menos, uma das línguas oficiais”. Já aquelas que escolhem o chinês como primeira língua devem ter em consideração o ensino do cantonês e do mandarim.
De recordar que, segundo dados divulgados em 2017 pela então responsável deste departamento, 24% dos professores de chinês do ensino não superior já utilizavam mandarim como língua veicular. Durante um evento, Leong Lai referiu que o objectivo era aumentar “de forma estável” estes números, sublinhando a importância do ensino de mandarim no contexto da concretização do princípio “Um País, Dois Sistemas”.


Mas concorda que é importante que a população de um país fale a mesma língua?
Sim, mas tem de haver um equilíbrio.

É um elemento de unidade.
Os chineses acreditam profundamente que um país unificado deve ser a norma. Eles gostam do padrão. No sangue dos chineses, existe apenas um país, uma dinastia… Eles sentem-se confortáveis em ter um padrão. Menosprezam os dialectos, por não serem requintados, talvez.

Fala-se muito em patriotismo. No futuro, ser-se patriota vai ser falar mandarim?
O governo de Macau quer que as pessoas sejam patriotas, então as pessoas que estão em cargos de chefia…. [silêncio]

São mais papistas que o papa?
Sim, é esse o caso. O que temos de continuar a fazer é manter o cantonês energético e interessante.

É a presidente da Associação do Dialecto Yue de Macau. Mas afinal o cantonês é um dialecto ou uma língua? Esta questão não é consensual.
Para ser sincera, este é só um nome. A associação foi formada em 2003 por um grupo de alunos – no qual eu me incluo –  de Zhan Bohui, académico que investiga os dialectos yue e min na Universidade de Jinan, em Cantão. Foi aí que fiz o meu doutoramento. Foi escolhido esse nome para a associação sem grandes reflexões, embora eu tenha alguma abertura em relação a isso. Todos os dialectos são, de certa forma, línguas. Não acha?

Há especialistas que dizem que do ponto de visto linguístico é uma língua, do ponto de vista político é um dialecto. Exactamente pela questão que referiu anteriormente, da unidade.
Seja uma língua ou um dialecto, vale a pena ser preservado.


As línguas yue (粤语) são um grupo linguístico falado no sul da China, especialmente nas províncias de Guangdong e Guangxi. O termo ‘cantonês’ é muitas vezes utilizado como sinónimo, embora vários linguistas atribuam o nome a uma das variantes. 


E o que é que está a associação a fazer por isso?
Neste momento não estamos a fazer nada. Publicámos alguns trabalhos em revistas académicas, embora não o façamos há um par de anos. A questão é que os fundadores são todos da área académica e damos aulas. Enquanto presidente, talvez devesse ter estado mais activa nos últimos anos e ter escrito mais nos jornais, falado mais em público, feito mais para que fosse criada literatura, por exemplo.

Será que as pessoas não se apercebem o que se está a passar? Liga-se a televisão e a língua que se ouve ainda o cantonês. Talvez não estejam conscientes da gravidade do problema.
Em Macau, mais de 55 por cento da população não nasceu aqui e, por isso, têm uma relação chegada ao Continente. As pessoas não estão preocupadas com a preservação ou a manutenção deste dialecto ou língua especial.

Ao contrário de Hong Kong.
Sim, especialmente nestes últimos anos. Em Macau, isso não acontece. A verdade é também que aqueles que nasceram em Macau têm maior abertura (em relação a outras línguas) e não têm tanto essa urgência na preservação do cantonês. Existe uma maior consideração por parte destas pessoas, ou seja, falam mandarim ou cantonês, consoante a necessidade. Um pouco aquela ideia: se não falares a minha língua, então eu falo a tua.

Mais do que em Hong Kong?
Sim. No final da segunda Guerra Mundial, tínhamos o cantonês padrão, mas em Macau, mais do que cantonês, falavam-se vários dialectos yue e todas as pessoas se entendiam. Eu costumava contar aos meus alunos cenas interessantes a que se assistiam, como por exemplo entrávamos num café e encontrávamos uma mulher velha a falar um dos dialectos de Zhongshan com alguém mais jovem a responder em cantonês padrão. Não havia qualquer problema de comunicação. Nos anos 1970 ou 1980, era muito comum as pessoas falarem dialectos diferentes. Os meus pais, por exemplo, são de Xinhui (Sanwui) e falam um subdialecto yue, o siyi (conhecido em tempos como szeyap). Acredita-se que cerca de 3,9 milhões de pessoas falem este subdialecto.

Fala siyi?
Não, mas entendo porque é a língua materna dos meus pais.

Nessa altura a que refere, ouvia-se menos mandarim na rua.
Hoje temos muitos trabalhadores do Continente, temos o turismo. Entra-se num restaurante e é comum ouvir-se falar mandarim. Com a expansão da indústria do jogo, Macau recebeu muita gente para aqui trabalhar. Antes da pandemia, contabilizavam-se cerca de 170 mil trabalhadores não-residentes [eram 196.538 mil no final de 2019, dos quais 62% do Continente chinês], numa população de cerca de 600 mil habitantes.

Dia 20 de Abril  (hoje), a ONU marca o Dia da Língua Chinesa. Acredita que o chinês tem capacidade para se internacionalizar?
No sentido da educação, penso que ainda não estamos preparados para ensinar o Chinês como língua estrangeira. Não temos estudos ou trabalho académico para fazer esta transição da teoria para a aplicação. Entre estes dois elementos há um fosso gigante e as pessoas não sabem qual é a diferença. Na minha opinião, estão a ensinar chinês a estrangeiros como se fosse a língua materna. Não estão academicamente preparados. O que vai acontecer é que as pessoas ficam aptas para falar chinês de forma oral, um chinês de sobrevivência, mas não estão preparados para ir até outro nível.


O Dia da Língua Chinesa é celebrado anualmente a 20 de Abril, no contexto da promoção das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas e em homenagem a Cangjie, figura cimeira da Antiga China, historiador oficial do império e dado como o inventor dos caracteres chineses. Conta a lenda que Cangjie tinha quatro olhos e que quando inventou os caracteres, divindades choraram e o do céu caiu painço. A partir desse momento, os chineses começaram o celebrar o Guyu (o sexto termo solar do calendário lunar chinês) em honra a Cangjie.


Mesmo entre a população chinesa, as crianças começam a aprender a escrever mais cedo. Isto tem algum impacto significativo no desenvolvimento de um jovem?
Sim, é extremo. Eu comecei a aprender a escrever aos quatro ou cinco anos, mas hoje, as crianças vão para o jardim infantil aos três. Apesar do governo não querer que aprendam a escrever tão cedo, no jardim-de-infância ensinam logo. Ainda há pouco conhecimento sobre o desenvolvimento infantil.

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