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política e sociedade

O nariz, o meridiano, a visão dos chineses e a quebra de paradigma para o ocidente

July 7, 2020

O nariz, o meridiano, a visão dos chineses e a quebra de paradigma para o ocidente

Nota do Extramuros:

Conheci a Fernanda há nove anos em Pequim, mas só mais tarde, já eu tinha regressado a Macau e ela ao Brasil, começámos a trabalhar juntas. A Fernanda é colaboradora do EXTRAMUROS desde o início do projecto, e não podia ser de outra forma, porque conhecer a China além da China era também para ela uma missão. Muitas das vezes que falávamos ao telefone ou por mensagem, a Fernanda lançava-me novas ideias, propunha novos temas e projectos, mas a maior parte, com pena minha e provavelmente por minha culpa, nunca se chegaram a concretizar. A Fernanda era uma lutadora. Do nada, construía pontes. O ‘Doc Brazil Festival’, uma mostra de documentários brasileiros realizada na China, é talvez o maior desses compromissos.
Foi com profunda tristeza e uma enorme sensação de impotência e frustração que recebi a notícia da sua partida. Publico hoje este último texto/ideia/observação/nota/apontamento/pensamento/olhar inesperado que a Fe me enviou há uma semana para o EXTRAMUROS.
Obrigada, amiga.

Catarina


No Brasil, a gente cresce ouvindo que um dia vai ser dono do próprio nariz. Na China, desde a aprovação da lei da propriedade privada – ratificada em março de 2007 e que entrou em vigor sete meses depois, na altura que o país inteiro celebrava o advento da República Popular  – o direito sobre ser dono do próprio nariz é intrínseco. Mesmo que as discussões tenham tardado quase 14 anos até que houvesse um consenso, cada cidadão já nasce com a importância do nariz posta, digamos assim.
O assunto é tão sério que independentemente da idade, a consciência disso existe. Está presente na identificação enquanto indivíduo, em exemplos didáticos e até na gramática. Isso tudo porque para os chineses (aliás, japoneses, coreanos, tailandeses, indonésios –  não estou segura sobre os demais orientais), a identificação entre um ocidental e um oriental é feita pelo nariz.
Sim, esse foi um dos meus maiores choques culturais em terras pequinesas. Foi uma dessas revelações que nos causam piada por desconstruírem o modo de pensar a que estávamos habituados.
A quebra do paradigma que é para um ocidental pensar e associar a identificação de um asiático aos olhos puxados e, em seu lugar, ponderar o tamanho do nariz, foi responsável pela descoberta de fatos curiosos. Como a façanha que eles (os orientais, ok os de nariz pequeno e baixo) possuem em relação a nós um maior ângulo de visão – já que o osso alto que dá forma ao nariz situa-se abaixo da linha de visão. O ponto negativo é que alguns se tornam levemente vesgos por conta da falta do “meridiano” e a maioria enfrenta problemas para sustentar os óculos.
Vantagens e desvantagens à parte, o fato é que quando indagados sobre algo que lhes concerne, tratam de levar o dedo indicador até a ponta do nariz (como na foto), seguido de uma explanação qualquer sobre a primeira pessoa. Assim como faríamos nós no ocidente, apontando na região do tórax e dizendo “eu”.
O nariz, curiosamente utilizado de forma pejorativa no Brasil em alusão a pessoas tidas como confusas ou perdidas (“não sabe nem aonde está o nariz”), encontra-se na China presente nos conceitos gramaticais para ajudar na localização geográfica do interceptor para com o interlocutor.

Aqui um exemplo:

Em mandarim, costumam utilizar-se dois caracteres ou fonemas para designar algo ou alguma coisa. Existe a necessidade da complementação, o que em português soaria redundante. Em mandarim é o correcto e muitas vezes causa certa confusão, mas na hora destas construções o nariz entra para orientar. Na prática e na gramática é desta forma que se dá:

过 ( guo – ir ) 去 ( qu – ir ) 来 ( lai – vir)
*válido lembrar que não existe conjugação de verbo, ou seja ‘ir’ pode se transformar também em ‘fui’.

Para situações onde você vai em direção a algum lugar e está indeciso, sobre como utilizar estas combinações que parecem na verdade o mais do mesmo, basta considerar a posição do nariz do interceptor. Ou seja se você caminha em direção ao nariz de alguém, utiliza a combinação 过来 para a situação inversa 过去。

Por estas e por outras, e mesmo com as brechas que a lei da propriedade privada não assegura, os chineses têm maior facilidade em analisar aonde meter o nariz.


Foto de destaque: shutterstock.com