a china além da china
política e sociedade

Hong Kong: a poesia como arma

November 21, 2019

Hong Kong: a poesia como arma

Quando chegamos a um bairro manhoso, as pessoas podem mais facilmente parecer-nos ameaçadoras. Como quando entramos num hospital toda a gente nos parece doente. Ou em comícios de certos partidos políticos em que todos nos parecem imbecis – embora, neste último caso, as aparências possam ter uma intensa relação com a realidade. Isto para dizer que a nossa percepção das coisas funciona por vezes como um placebo. E foi assim que, no barco que apanhei há umas semanas de Macau para Hong Kong, quase todas as pessoas me pareciam, além de chinesas, muito zangadas.
Era a minha primeira visita à cidade desde que começaram em Junho os protestos anti-lei de extradição, entretanto transformados em autênticas batalhas urbanas. O dia prometia ser quente: morrera Chow Tsz-lok, estudante de 22 anos vítima de uma queda aparatosa de grande altura durante os confrontos com a polícia. Havia já vigílias agendadas. Dois camaradas jornalistas, vindos de Macau, preparavam-se para acompanhar os acontecimentos noite dentro. Outro amigo, escritor, decidira juntar-se a eles. Eu, no entanto, ficaria para trás. Ir com a namorada, chinesa do Continente, para o meio dos protestos não parecia a decisão mais inteligente, fruto desse funesto sentimento anti-República Popular da China que se estende também às pessoas do Continente e aos falantes de mandarim em geral – um dos lados mais lamentáveis de toda a contestação que atravessa Hong Kong.
De maneiras que ficámos instalados no Soho, entre galerias de arte e restaurantes da moda. Mesmo aí, porém, pressentia-se uma maleita qualquer que afectava a cidade. Aquilo não era o hospital mas Hong Kong estava doente. Não era a mesma. Talvez nunca volte a ser.
Eu viera a Hong Kong para coordenar uma sessão de poesia no dia seguinte, num bar qualquer da horrível Lan Kwai Fong, onde depois dos poetas actuou uma banda de impersonators de Donald Trump e Kim Jong Un. Isso mesmo. Caso para dizer, fuck me.
Mas a poesia. Uma sessão de leitura de poesia é, de certo modo, tudo aquilo que a poesia não deve ser. Um sem fim de poetas despeja, de um pequeno palanque e em ordem predeterminada, aquilo que lhe vai nas entranhas. O recipiente é uma audiência falsamente compenetrada, esmagada por tanto verso. Se juntarmos a isso o cansaço acumulado de dias anteriores e o preço inenarrável de toda cerveja e até dessa bebida que se lhe assemelha e que leva o nome de Heineken, a minha predisposição para a poesia estava ao nível do mar. Até que, maré alta.
Uma rapariga local de menos de 30 anos, fita no cabelo, é chamada ao palco. Com uma voz afirmativa, diz que tem passado a maior parte dos seus dias zangada, muito zangada com tudo o que está a acontecer em Hong Kong. Depois, lê este poema.

Press Conferences

There’s no way our heart is made of glass
when our eyes don’t tolerate a grain of sand.
I don’t see. I don’t know. I don’t believe. I don’t think
all that sand is to be stolen from villages,
sold and sunk at the bottom of your sea,
our sea where secrets have been washing
ashore like syringes and bodies, where
Tomorrow’s Vision is as clear as skyscrapers
as another Trojan Horse on permanent loan.
You see, it’s all for your own good when I
tell you to love me, love me like how
taxis boarded on the rebels’ sidewalks, love me
like how barrels unwillingly let go of bullets,
love me like how his ear dropped. My love
doesn’t bite if you love me back. Love
redefines, so when we used to say
“Threads in a kind mother’s hand, 慈母手中線
clothing on a wandering son 遊子身上衣”,
we meant “Tofu Shatin-Central Line 豆腐沙中線
Take off your clothes for the rail 通高快寬衣”.
But don’t you worry, your love for the
country is your last refuge: Love me unconditionally
with a foreign passport. Love takes no bribery
when you’re in Burberry. Love me in small-scale
parade. Love me in your father’s Lamborghini.
Love me more than money, love me without money
as you wave the party’s 5-star flags in reverse,
the one and only red that’s not nauseating.
We see you, your black and blue, when you
feel for shattered glass more than fractured bones.
I don’t see. I don’t know. I don’t believe. I don’t think
The dead are more suspicious than the living.
To die in black is okay. To hurt in blue is also okay —
Isn’t this the ultimate freedom if you’re on our side?
The line between accidents and assaults is just that thin.
We see you, your mosque dyed blue when your
indignation could be stronger than our weapons.
Accept our apology, like really. We don’t do that
to churches and temples. I don’t see. I don’t know.
I don’t think. I can’t believe why you are so angry,
didn’t your parents teach you how not to talk back
to elders? Didn’t you read just enough but not too much?
I don’t blame you. Your teachers persuaded you
to take to the street better than making you listen in class.
Look at how calm I’m despite my rash
at those foreign reporters’ questions.
Now I’m drinking this glass of water calmly.
I’m calm, tough, responsible, so as my team.
Why don’t you talk to me? It’s a perfectly safe space
with water barricades bigger than any of us.
Thank you very much for stopping your daily activities
for this press conference when protesters have stopped
our daily operations. We’ll try our best to restore
everything to normality, which is the want of many.
‘What if normality is the problem?’
Excuse me but I don’t see. I don’t know. I don’t believe.
I don’t think the question you just asked is a question at all.
Now I’m drinking this glass of water calmly again.
‘What would you do if you can’t satisfy the many?’
That’s not a question at all. We need to look at the bigger picture,
when our 8 million are bleeding, like really bleeding into 14 billion.
‘What if normality is the problem’
What’s that again? Oh yes,
I don’t see. I don’t know. I don’t believe. I don’t think
our hearts are made of glass.

Cheng Tim Tim tem 26 anos e é professora em Hong Kong. “Quem me dera ser estudante outra vez”, disse-me dias depois por email. A leitura do seu poema foi um pequeno terremoto na noite pachorrenta. Ela foi uma das mulheres que fizeram de uma sessão que se adivinhava banal um momento inesquecível.  “Fui a todos os protestos em Junho, Julho e Agosto. Comecei a obrigar-me a escrever religiosamente sobre os protestos desde o meio de Junho. Estou a tentar captar a ‘terrível beleza’ que os protestos trouxeram a Hong Kong”, começa Tim Tim. “O meu coração grita ‘casa’ quando me encontro nos locais de protesto com amigos, estudantes e pessoas que sigo nas redes sociais. O mapa mental de ‘casa’ também se expande quando, na segurança de estar com outros manifestantes, sou levada para lugares onde nunca pensei ir na minha própria cidade. As mudanças em Hong Kong desde o movimento contra a lei de extradição também me fizeram reexaminar os meus hábitos e crenças. Uma nova Hong Kong está a ser moldada e eu também.”
O poema de Tim Tim retrata as conferências de imprensa do Governo chinês a partir do ponto de vista do seu porta-voz. É um mecanismo inteligente de confrontação com a posição do outro. “A poesia enquanto meio de registar os protestos ajuda-me a concentrar-me nas imagens recorrentes que experienciei em primeira mão, enquanto manifestante, e em segunda mão, enquanto ‘activista de teclado’. Passar tempo a escrever ajuda-me a ganhar controlo sobre os traumas da violência do Estado em todas as formas”, diz a educadora. “Os manifestantes também criaram muitos trocadilhos e jogos de palavras que eu só quero roubar e mostrar nos meus próprios poemas. Enquanto professora, tenho a honra de ter estudantes que partilham comigo as suas experiências enquanto manifestantes, algumas das quais podem não receber cobertura dos meios de comunicação internacionais. A psicologia dos protestos é, para mim, mais importante do que a diplomacia, quisermos entender o que motiva os manifestantes. A motivação pode estar enraizada em algo universal, ou algo local e em constante mudança. A poesia abre espaço para reflexões pessoais, como fragmentos, muito melhor do que outras formas de escrita. Precisamos de poesia para curar, para lembrar, para novas perspectivas – mais do que nunca.”
A noite seguiu com vários poetas australianos, do Sudeste Asiático e até a da Europa. Mas Hong Kong era já uma grande sombra a pairar sobre todas as letras. Os meus amigos jornalistas davam-me conta de milhares de pessoas concentradas junto ao parque de estacionamento onde o estudante agora morto caíra dias antes. No bar, a poesia como arma voltava pela mão da norte-americana Collier Nogues, apontada à cabeça da Lei Básica.

Important Notice

This poem repurposes text from the first page of the publicly-distributed, English-language print version of the Basic Law, Hong Kong’s constitution.

This booklet is not
the Basic Law.

This booklet contains
the Basic Law but is not
the Law itself.

The container has
no legal status,
and should not be
relied on.

Refer to the Government
for the official version.

What, then, is contained here?

An instrument
a state

a con
a form

a leaf
a boot

some men
a foot

more men and women

Are we contained?

Are we these leaves,
the foot in this boot?

How does it fit?

Can this be
our boot, our instrument?

Can we edit it?

Nogues, 42 anos, vive em Hong Kong há seis. “Não vejo como não escrever sobre o que está a acontecer em Hong Kong, uma vez que estou a vivê-lo com os meus vizinhos. Sou académica de poesia contemporânea anti-guerra dos Estados Unidos, bem como poeta, portanto a poesia anti-guerra é tanto o meu foco criativo como crítico. A cidade não está, formalmente, em guerra. Mas os conflitos que acontecem aqui são batalhas, e penso que a poesia é uma forma de dar um entendimento mais abrangente do que aquele que os títulos de notícias podem oferecer”, explica.
Orwell, Huxley e tantos outros mostraram-nos a importância e a força da linguagem, e o modo como é utilizada pelos aparelhos estatais. Collier Nogues também se interessa por isso. “A crise de Hong Kong tem-me lembrado o quão importante é a linguagem. O facto de a polícia ter chamado ‘baratas’ aos manifestantes lembra o tipo de linguagem desumanizadora que, por exemplo, os meus concidadãos americanos usaram para se referirem aos japoneses durante a II Guerra Mundial; e a linguagem que os japoneses, por seu lado, usaram para caracterizar os chineses durante a ocupação da Manchúria. Estas não são apenas aplicações da linguagem que podemos relegar para o passado. Todas elas são exemplos do modo como a linguagem pode ser usada para negociar e consolidar o poder sobre outras pessoas. É por esta razão que trabalho com ‘erasure poetry’, particularmente a apagar documentos governamentais e outros que legislam acordos formais e informais de poder. Apagar este tipo de documentos é um modo de responder-lhes. Ajuda-nos a ver as suas vulnerabilidades e lembra-nos que não podem amarrar a nossa imaginação.”
A imaginação corre livre pelos poetas de Hong Kong. Phoebe Poon, 32 anos, franzina, óculos tímidos, escreve sobre os rios de gente que inundam as ruas, as manifestações a preto e branco onde dizer e usar preto ou branco ganhou uma carga inesperada.

Black and white

That Sunday day afternoon
When a river of us
Wound through the city’s
Retail heart into the throne
Of power, we were still
In white. That day boiling
Old blokes broke their silence.
That day young families
Made memories of their
First protest. We waited,
Breathed our own existence,
Chanted in the heat of
Each other’s skin

To no avail. So when
Another dawn heralded
Darkness, we returned
In black, filling up the arteries
Of our doomed organ.
The bravest guarded it with
Bricks, barricades, metal bars,
Stuff in situ, cleared our vision
In billows of white smoke

Only to be tossed
An up-in-the-air note.
So when he fell off to
His white banner,
We returned in a sea
Of black, carrying white
Lilies and roses. When
More souls were crushed and yet
Flags were raised as usual,
Those who wanted to give up
Their lives gave them to
The organ we failed to hold

Only to be condemned
For breaking hearts of glass
In the wee hours. So we
Bifurcated into
Black streams, gushing here
And there. So when white was
Stained by terror of poles, knives,
Arms and fire, even water
Caught fire, burning jade
With gravel.

“Actualmente, o movimento anti-extradição transformou-se numa parte tão central da vida em Hong Kong que se tornou quase impossível para mim pensar em algo totalmente não relacionado com isto. É difícil escapar à pulsão de acompanhar as notícias nas redes sociais em qualquer momento livre. Além disso, gosto de ler sobre as experiências em primeira mão dos meus amigos e a sua resposta a estes eventos”, conta Phoebe Poon. “Outra questão é que os protestos deram origem a um vocabulário distinto (como ‘sê água’, ‘irmãos escalam colinas, cada um fazendo a sua parte’, ‘subir juntos, voltar a descer juntos’, ‘sonâmbulos’) e muitas imagens poderosas que accionaram as minhas ideias poéticas, mesmo que algumas servissem apenas como ponto de partida. Sinto-me inspirada pela criatividade dos meus concidadãos.”
Phoebe costuma frequentemente perder-se em palavras e, agora, encontrou na “obscuridade da linguagem poética” a forma de lidar com o que está a acontecer em Hong Kong. “Eu não sou o tipo de pessoa que derrama palavras quando se sente oprimida; quando tomo conhecimento de algo ultrajante, guardo as emoções e espero pelo momento em que possa acalmar-me para deixar as minhas ideias desenvolverem-se. De certa forma, escrever obriga-me a dar um passo atrás no meio do caos. Não penso muito sobre quantas pessoas realmente lerão o meu trabalho quando escrevo, mas certamente quero transmitir a intensidade emocional que me afecta, para que quem leia possa experienciar o mesmo choque que qualquer cidadão comum sente. É isso que a poesia pode fazer de maneira diferente em relação à miríade de textos jornalísticos que circulam por aí.”
A poesia tem, de facto, essa capacidade de passar uma carga emocional difícil de igualar. Tammy Lai-Ming Ho, académica, poeta, tradutora, co-fundadora da Cha: An Asian Literary Journal e mulher de mil ofícios apesar dos seus menos de 40 anos, foi uma das dinamizadoras da noite de poesia e foi quem trouxe até mim os versos destas mulheres de Hong Kong. No bar enfaixado numa das gavetas de betão da cidade, Tammy não leu, foi apenas cicerone. Ela, no entanto, tem sido provavelmente a voz poética mais activa e audível da cidade durante este período conturbado. Por email, enviou-me este poema inédito.

Crude Insistent Passion

At which point we are beaten
we stand up again
against the brickbats

of unvarnished tyranny.
At which point we despair
we remember

the conception of hope
and the daily chanting
of our identity.

Every Hong Konger
who has a conscience
is my rising sun. Our fight

is organic, like the heart
that beats
into a dignified introduction.

We are humans; we bleed,
shake in anger, and love,
not yellow objects lost,

kicked about
by Asia’s finest. The future
is embedded in the past,

which beckons now.
We are unafraid
of blanks,

which we will fill in
with diligent
anticipation.

(This poem was written on 29 September 2019 and it makes reference to an incident on 21 September 2019)

“Tenho tido a felicidade de ver alguns dos meus poemas que respondem aos protestos publicados em diferentes países e traduzidos para várias outras línguas, para que mais pessoas no mundo possam conhecer a situação em Hong Kong, para além das peças jornalistas assinadas por repórteres”, diz Tammy, para quem escrever o actual momento é uma obrigação. “Nos últimos meses, a única coisa sobre a qual consigo escrever são os protestos. Estou emocional e psicologicamente absorta no que está a acontecer na minha cidade. Parece-me difícil e irresponsável não escrever sobre o actual movimento. Enquanto escritora, académica, editora e tradutora, isto é o mínimo que posso fazer.”
Tammy Ho diz escrever sobre a cidade porque não pode não escrever. “Este é o meu lar, o meu tudo, e é importante enquanto poeta assumir a responsabilidade de documentar e registar na memória os eventos e momentos dos protestos através da poesia. Os poemas são concisos em termos de extensão e no entanto expansivos no seu potencial para activar ou espoletar a imaginação. É também uma forma de escrita alternativa para responder aos protestos. Devemos usar todas as ferramentas que temos e usá-las em todo o seu potencial.”
Atordoado pelo peso das palavras destas mulheres e pelo total da conta na barra do bar, desci para a rua com alguns convivas quando Trump e Kim já cantavam alegremente no palco. As colunas de Lan Kwai Fong vomitavam tudo menos música, enquanto uma rapariga de feições indianas vomitava também ela sentada num degrau. Ouviam-se sirenes ao longe e o mundo dava sinais de poder acabar a qualquer momento. Antes que a coisa se desse, fugimos dali. Demos por nós, pela segunda noite consecutiva, a beber sake num restaurante japonês. Chamava-se Nojo.