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Proposta de desconstrução etimológica do carácter sino-asiático “天”

September 11, 2020
(em colaboração com Mathilde Denison Cheong)

Proposta de desconstrução etimológica do carácter sino-asiático “天”

Um verso da música “Nothing’s Gonna Stop Us Now” (1987) do grupo de música americano Starship, na versão cantonense do cantor de Hong Kong, George Lam, diz:

“Não nos importamos mais com o resto do mundo/Deixa cair todo o universo/O mundo deserto/O sol e a lua dispersos em meteoritos/Beijamo-nos cada século até ao fim”

(剩下獨是我跟你/就讓宇宙塌下/世界變了荒地/日月碎做殞石/我倆也吻著到每個世紀)

(Seng ha tok si ngo kan nei/Chao ieong ü chao tap ha/Sai kai pin lio fong tei/Iat üt soi chou wan sek/Ngo leong ia man cheok tou mui ko sai kei)

O universo não cai. Aliás, não pode cair. Nós somos parte desse universo. Cai o carmo e a trindade, talvez, mas o universo nunca poderia cair – isto é, se esta palavra utilizada nesta letra de música significar, de facto, universo. Já o céu é outra coisa.
Como mencionámos no nosso último artigo, este género de conceitos – e particularmente o caso de conceitos de origem ocidental – são muitas vezes utilizados no cantonense informal como se fossem sinónimos.
No caso desta letra de Poon Wai Yuen (Pān Wěiyuán em mandarim), “universo” significa simplesmente “céu”, em referência à expressão cantonense “ao cair, o céu serve-nos de cobertura para dormir”. Isso quer dizer que não há que temer a queda do céu.
O conceito de “universo”, de origem ocidental, foi importado à Ásia oriental e misturou-se com os próprios conceitos e formas de pensar da China clássica. No processo da tradução, empregaram-se caracteres do chinês clássico para criar uma nova palavra que correspondesse a este conceito de “universo”. Este não é, no entanto, o objecto de discussão deste artigo.
O que nos parece interessante observar é o facto dos conceitos compreendidos categoricamente como diferentes no Ocidente poderem confundir-se em cantonense. Isto mostra claramente que as nossas maneiras de ver o mundo são muito próximas e radicalmente diferentes ao mesmo tempo.
Através desta canção, é evidente que as duas palavras “universo” e “céu” são usadas de forma equivalente, ou seja – e para ser mais preciso – nas letras de Poon Wai Yuen, “universo” refere-se a “céu”, o sujeito do nosso artigo.
Antes de ir mais longe nas nossas explicações sobre a palavra e o conceito de “céu” chinês e de propor uma desconstrução etimológica do carácter sino-asiático “天” (céu), gostaríamos, como habitualmente, de apresentar uma lista de pronúncias do mesmo, segundo as diferentes variantes das línguas sínicas e outras línguas confucionistas:

Nalgumas línguas sínicas que também se falam ou escutam em Macau:

Cantonense: tin
Fuquinense: tien (pronúncia “literária”), tin (pronúncia “coloquial”)
Hac-ka: tien
Mandarim: tiān, com pronúncias muito próximas nos dialectos das províncias chinesas do Sujuão/Sìchuān, Sancim/Shānxī ou Xianxim/Shǎnxī
Línguas dos wu: ti (dialecto de Xangai), tiê (dialecto do Hamcheu/Hangzhou)
Japonês: ten (em ambas as pronúncias go-on e kan-on)
Coreano: tchón
Vietnamita: thiên
Cuengh, língua oficial nominal da região autónoma chinesa dos cuengh do Quancim/Guǎngxī: observamos que o caracter “天” não foi directamente emprestado do chinês clássico, mas o carácter era utilizado como radical para escrever as palavras mbwn ou fax – “céu” em cuengh, caso semelhante à palavra indígena vietnamita tri (ou “?”, na antiga escrita sino-vietnamita), em contraste com a palavra e o conceito emprestados do chinês clássico thiên.

Num texto sobre este carácter, publicado no Extramuros em 2017, Luís Ortet explica pertinentemente que o carácter “天”, na sua versão moderna informática, pode facilmente dividir-se em duas partes distintas: a parte de cima “一”, com a forma idêntica ao carácter que significa “um”, assim como a parte de baixo, “大”, carácter que quer dizer “grande”. O carácter “天” (céu) é em si de uma extrema complexidade. Aqui tentamos apresentá-lo da forma mais compreensível e simples possível.
Na escrita de oráculo em ossos, que é reconhecida como a mais antiga da China, podemos ver como o carácter “天” aparece numa forma diferente à que conhecemos hoje e a qual acabámos de apresentar. Na escrita de oráculo, o carácter é composto por dois “一”, um quadrado “口”, e o carácter para “grande” – “大” – que simboliza uma pessoa adulta de pé. Mais um exemplo que pode mostrar a grande complexidade simbólica e mítica destes dois caracteres: “一” e “口”. São dois símbolos que representam a cosmogonia da China mais antiga e que não se reduzem aos significados de “um” ou “boca”.
Na escrita em estilo de bronze da dinastia Zhou (Chao em cantonense ou T’iau segundo a reconstrução do chinês arcaico de Bernhard Karlgren -ca.1046 até 256 a.C.), o carácter “天” tinha uma forma que atrai ainda mais a nossa atenção, tal como podemos ver na imagem abaixo trata-se da imagem de um ser humano. Na escrita moderna, a parte de cima –  “一” – podia representar-se na forma de um grande ponto: “●”.
Para compreender melhor os significados mais antigos das variantes do carácter “天”, cuja importância para o pensamento da China desde a sua origem mítica é notável, recorremos a dois grandes clássicos históricos. No “Clássico das Montanhas e dos Mares” (para esta obra, recomendamos a tradução inglesa The Classic of Mountains and Seas de Anne Birrell), um clássico antiquíssimo da China mítica, está contado como o “tiān” (“天”) (ou “thien” na pronúncia de antes do século III a.C. segundo o sinólogo sueco Karlgren) foi literalmente decapitado.
Como podemos compreender um “céu” decapitado? A ausência de imagens no “Clássico das Montanhas e dos Mares” deixa tanto espaço para a imaginação como para a perplexidade. Esta questão encontra, porém, uma resposta visual vários séculos mais tarde, no livro A Chinese Bestiary do sinólogo americano Richard Strassberg. Nessa obra, podemos ver uma imagem fotocopiada de um desenho chinês (ver imagem) que data do século XVII e que mostra a personagem “céu decapitado”, cujo corpo, na ausência de cabeça, se transforma numa cara.
Numa curta passagem sobre esta personagem, Strassberg refere-se à mesma pelo seu nome: 形[刑]天 que o académico traduziu segundo o mandarim como Xingtian (seria Ieng Tin em cantonense). Porém, o que é usado como um nome por Strassberg é, segundo uma outra teoria, compreendido de uma forma totalmente diferente: nestes dois caracteres xíng e tiān encontram-se um verbo e um objecto que significam literal e justamente o “céu decapitado”, sobretudo quando temos em conta que o carácter 形[刑] aqui significa “exercer o castigo”.

Pensando melhor, esta visão do Céu como figura mítica decapitada parece lógica, principalmente quando olhamos para a escrita dos Zhou. Do mesmo modo, a estreita relação que mantêm o céu (ou melhor a natureza em geral) e o homem – e a importância que esta relação tem nas culturas sínicas – torna-se mais visível, uma vez que, segundo esta escrita, o carácter para “céu” e para “homem” (人) são semelhantes, mas também muito diferentes. Na parte inferior do carácter “céu”, vê-se a imagem de um adulto em pé a encarar-nos. Já o carácter “homem” ou “ser humano” visualiza a imagem de um adulto visto lateralmente e inclinando-se ligeiramente para o lado esquerdo. Mais precisamente, trata-se de um dos sujeitos do Filho do Céu (o Rei que era o único governante e se representava como divino) e este sujeito curva-se como gesto de reverência.
O segundo exemplo aparece no texto original do clássico chinês “I-Ching” ou, em cantonense, “Yi Keng”, mais conhecido como “Livro das Mutações” nas duas das muitas traduções portuguesas mais conhecidas entre leitores lusófonos. Neste artigo vamos referir-nos à tradução que o Padre Joaquim Guerra fez directamente do chinês clássico para o português e à versão brasileira de Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto, feita a partir da velha tradução alemã de Richard Wilhelm. As duas traduções parecem-nos muito interessantes como referências para este artigo em português.
No “Livro das Mutações”, é interessante notar que o carácter “天” é igualmente empregado como um verbo. Segundo o filólogo chinês Zhang Taiyan (Cheong Tai Im em cantonense ou Djang T’é Ié de acordo com a sua língua materna dos wu – 1869-1936), este carácter significa, quando usado como verbo, qualquer coisa como “castigar alguém fazendo uma marcação violenta de uma tatuagem na testa”. Por isso, a tradução brasileira parece-nos discutível, uma vez que o sinólogo alemão Wilhelm tinha traduzido este carácter como “cortado o cabelo […]” (“[…] Harre […] abgeschnitten” em alemão).
Em contrapartida, a tradução do Padre Guerra aproxima-se da teoria com a qual que concordamos. Escreveu, “Theen [天, transcrição própria do chinês universal do Padre Guerra] significa “marcado na cara”. A sua explicação não corresponde inteiramente à teoria do filólogo Zhang, mas pelo menos oferece uma interpretação mais adequada. Para compreender o castigo do qual falamos aqui, recomendamos um filme co-produzido pela China e por Hong Kong em 1996, “The Emperor’s Shadow” de Zhou Xiaowen (ou Chao Hio Man, em cantonense), onde podemos recuar ao século III a.C.
Entretanto, gostaríamos agora de acrescentar uma nota sobre o carácter “céu”, e que foi inspirada por uma obra filosófica chinesa contemporânea. O livro de Zhao Tingyang (Chio Teng Ieong, em cantonense, ou ainda Tiô Teng Iang no dialecto da sua terra Shàntóu/Swatow), “A Possible World of All-Under-Heaven System” (título inglês que aparece na capa do livro em chinês) foi traduzido em alemão pelo sinólogo bávaro Michael Kahn-Ackermann e publicado nesta língua pela editora Suhrkamp.
Na nota do tradutor, que vem antes do conteúdo do livro, o carácter “天” é explicado por Kahn-Ackermann como a tradução em chinês de “céu” ou “dia” – é de notar que, em cantonense, este carácter não tem o significado de “dia”. Este carácter, tanto em chinês clássico como nas variantes modernas das línguas sínicas, ou seja, dos seus descendentes, é muito mais rico. Em mandarim moderno, assim como em cantonense informal (o cantonense que não sofreu demasiada influência do mandarim), o carácter “天” é ainda usado como substantivo para significar, entre outros, e segundo a herança do chinês clássico, “clima”, “estação de ano”, “onde se encontram as divindades” ou ainda “natureza”.
Como faço questão de repetir aos meus amigos que se interessam por entender pensamentos alternativos, é importante aprender a teoria de uma língua, mesmo sem a ambição de a dominar. Ou pelo menos, perceber todos os significados que uma palavra pode ter. De facto, tanto através de uma pequena pesquisa etimológica como de um estudo sobre os significados literais das palavras, descobrimos inúmeras formas de pensar e que se escondem atrás de uma só palavra. Estas formas de pensar fazem-nos entender como o mundo é culturalmente tão diferente e semelhante ao mesmo tempo.
Para concluir, quero ainda dizer que me parece extremamente interessante que, nas línguas sínicas, o conceito de “céu” mantenha ainda hoje uma estreita relação com o ser humano. O carácter “天” mostra-nos que, tanto nas suas formas mais remotas como na escrita informática mais recente, é possível observar uma ligação entre o céu (e natureza) “天” e o homem “人” . Esta ideia corresponde justamente ao pensamento chinês clássico de que o céu e o homem formam um conjunto. Esta reflexão fecha a nossa modesta apresentação etimológica e a desconstrução “visual” do carácter “天”.


Foto de destaque: Macau/ Carlos Gonçalves

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