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O termo ‘liberdade’ no mundo confucionista

August 6, 2020
(em colaboração com Mathilde Denison Cheong)

O termo ‘liberdade’ no mundo confucionista

Quando pensamos nas circunstâncias políticas actuais na China Continental, Taiwan ou Hong Kong, e nas discussões que estas circunstâncias despertam, apercebemo-nos que a ideia de “liberdade” é constantemente referida. Parece-me interessante reflectir sobre a história do termo utilizado em chinês para transmitir essa mesma ideia de “liberdade” nas línguas ocidentais – a palavra “自由” (chi iao, em cantonense, ou zìyóu, em mandarim) – dois caracteres que têm origem no chinês clássico.
Neste artigo, espero mais uma vez estimular, por meio de uma análise etimológica das palavras, uma reflexão linguístico-filosófica. De facto, a palavra “自由” é partilhada pelas várias línguas que povoam o mundo confucionista, e o seu uso pode compreender várias nuances em função das diversas zonas linguísticas. Estas diferenças são particularmente frequentes nos três territórios acima referidos. Quando comparamos os usos do termo na China Continental, em Taiwan ou em Hong Kong, destacam-se importantes aspectos na compreensão deste termo que exprime a ideia de “liberdade”, palavra de origem germano-românica, adoptada no século XIX pelo mundo confucionista por via da língua japonesa.
Mas vamos recuar ao início de Junho de 1989, a um dia que uma praça de Pequim não vai voltar a esquecer – sendo eu um cantonense de Macau, sei bem que não devo ir mais longe nas explicações… Nesse dia, centenas de quilómetros a sul da capital chinesa, a estação de televisão ATV, emitia um programa muito conhecido na época: “Celebrity Talk Show”, animado pelo letrista James Wong (1941-2004), assim como pelos escritores de Hong Kong, Ni Kuang, originário de Xangai, e Chua Lam, singapuriano de origem teochew (chio chao, em cantonense). A emissão desse dia recebeu um convidado especial, o cineasta da então colónia britânica, Tsui Hark, nascido em Cantão. Embora a emissão ocorresse como habitualmente, o programa não deixou de ser marcado por uma certa tensão.
Os eventos da capital chinesa foram abordados e enfureceram todos os presentes, à excepção de Chua Lam, que esteve, porém, menos comunicativo do que habitualmente. De forma inesperada, e em resposta aos comentários indignados dos outros três participantes, Chua Lam gritou num cantonense com forte sotaque, e, como diz a expressão chinesa, com o rosto e as orelhas ensanguentados, que “a democracia quer dizer que cada um é livre de fazer o que quer!”
Em cantonense, na linguagem corrente, não é raro que as palavras chinesas de origem (greco-)latina, como é o caso de “democracia” e “liberdade”, sejam confundidas ou usadas para exprimir uma mesma ideia, como se tratasse de apenas um conceito. Não é surpreendente um termo sofrer mudanças de significado quando é adaptado a outra língua. Este fenómeno, que é também visível entre os idiomas europeus, tem ainda mais destaque quando se trata do empréstimo de uma palavra a uma língua culturalmente tão distante como é o caso de uma língua ocidental a uma língua sínica.
O exemplo da flexibilidade no uso das palavras “democracia” e “liberdade” não é surpreendente. Poderíamos mesmo dizer que esta intercambialidade é, de certa forma, compreensível, na observação humilde deste vosso autor, porque a cultura popular cantonense tem muito menos a tendência de categorizar palavras e coisas. Isso é sobretudo o caso quando estas palavras e coisas são conceitos de origem europeia.
O objectivo deste artigo não é discutir filosófica ou antropologicamente nem o sentido nem o carácter divino da ideia de “democracia”, mas o que nos interessa aqui é o facto do termo “liberdade” em chinês ser tanto utilizado pelos manifestantes de Hong Kong, como pela China nos seus slogans de propaganda dos valores fundamentais do socialismo (“shèhuì zhǔyì héxīn jiàzhíguān”). É também interessante de notar que, num cantonense quotidiano, os dois conceitos ocidentais de “liberdade” e “democracia” são utilizados quase como sinónimos, ou seja, podemos dizer que os dois termos se confundem. Foi esta curiosidade que me fez embarcar nesta investigação etimológica da palavra “liberdade”.
Porquê é que existe uma divergência entre os significados de um mesmo termo na China continental, na Formosa e em Hong Kong? Na minha modesta opinião, a reposta a esta questão levanta dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, o espaço a que chamamos comummente de “Europa” é constituído, de certo modo, ao redor de um forte centro cultural e é neste sentido que podemos, em determinada medida, compará-lo com a formação da Ásia oriental – ou como prefiro chamar, a “Ásia confucionista”, a fim de não excluir o Việt Nam – antes da modernização e ocidentalização radical que esta Ásia sofreu. É esta formação contínua da Europa, em torno de um epicentro intelectual, que permitiu constituir, ao longo do tempo e de forma linear, uma base sólida de valores essenciais, dos quais a liberdade e a democracia fazem parte.
Em segundo lugar, como sabemos, os conceitos de “democracia” e “liberdade” chegaram ao mundo confucionista principalmente através a sua apropriação nipónico-chinesa ou sino-japonesa, no decorrer do século XIX, quando o Japão aspirava fervorosamente a uma modernidade que parecia não poder operar sem uma “desasiatização”, e enquanto a China via no processo de “ocidentalização” o único meio para salvar a nação chinesa da decadência que ameaçava o pais nesta época.
É também num contexto de admiração europeia que muitos conceitos ocidentais, entre os quais “democracia” e “liberdade”, entraram no vocabulário das línguas confucionistas.
Wang Xiaoyu, professora auxiliar de estudos japoneses da Universidade do Amói na China, publicou uma investigação muito pertinente referente ao sujeito que aqui analisamos. No início do artigo “Empreendimento de tradução e intercâmbios culturais entre a China e o Japão modernos: o caso de ‘liberdade’”, publicado em japonês, em 2015, pela Universidade do Kansai, a académica sublinha que o termo “自由”, que existia já em chinês clássico, tinha também um sentido de “egoísmo”, conotação que se foi perdendo quando os japoneses se apropriaram da palavra, ficando assim de lado o significado original da palavra em chinês clássico.

Antes de avançarmos para a análise etimológica deste termo, gostaria de mencionar aqui as variações na pronúncia, nas diferentes línguas sínicas e confucionistas:

“A liberdade é imortal”. Inscrição numa pedra comemorativa, erguida em 1920, em Cantão, para assinalar a segunda revolta contra o domínio manchu naquela cidade em 1910.

Em algumas línguas sínicas que também se falam ou escutam em Macau:
Em cantonense
: chi iao;
Em fuquienense: dju iu;
Em hac-ka: tchi iu;
Em mandarim: zìyóu, com pronúncias muito próximas nos dialectos das províncias chinesas do Sujuão/Sìchuān, Sancim/Shānxī ou Xianxim/Shǎnxī;
Nas línguas dos wu: ji hi (xangainense), ji hü (dialecto do Ham-cheu/Hángzhōu);
Em coreano: tcha-iu;
Em japonês: jiyū (dji-iu);
Em vietnamita: tự do;
E ainda em cuengh, língua oficial nominal da região autónoma chinesa dos cuengh do Quancim/Guǎngxī: swyouz.

Tal como foi mencionado no artigo que escrevi anteriormente sobre o “eu” chinês, numa perspectiva tradicional confucionista, o termo que transmite hoje a ideia de “liberdade” tinha, no seu significado original em chinês clássico – e como já dissemos aqui – um sentido associado ao egoísmo. Tanto o carácter “自” (chi em cantonense ou em mandarim) como o “由” (iao ou yóu)  têm a sua origem na escrita de oráculo em ossos. “自” representa originalmente o “desenho” do nariz de um elefante e viu-se, ao longo da história, dotado de vários significados – hoje utilizados ambos em cantonense e mandarim – como “eu”, “desde”, “a partir de” ou ainda “natura(l)”, entre outros. Por outro lado, a etimologia do carácter “由” é menos clara. Segundo uma das numerosas teorias, é composto pelo carácter na escrita de oráculo em ossos que corresponde hoje a “boca”, com um traço vertical sobreposto para marcar a pronúncia. “由” significa em mandarim “razão”, “conforme”, “desde” ou ainda, numa expressão em cantonense, “deixar estar”.
Em certas expressões em mandarim moderno, assim como noutras em cantonense, emprestadas do mandarim, o caracter “自” exprime ainda uma certa ideia de “egoísmo” ou certa falta de respeito hierárquico.
É a Fukuzawa Yukichi (1835-1901) – autor japonês importante na modernização do Japão que figura nas notas de dez mil yen – que se deve a difícil tradução do conceito ocidental de “liberdade” com a composição dos dois caracteres “自” e “由”. Um conceito, portanto, que não existia anteriormente, mas que hoje está largamente integrado nas línguas confucionistas. Justamente em cantonense, o emprego desta palavra composta pode pressupor, em determinadas situações, alguma arrogância.
Para terminar o artigo, quero mencionar ainda duas músicas de rock que vieram à minha cabeça/coração ao escrever este artigo: “Anos Gloriosos” (numa tradução da agência de notícias Lusa) de 1991, cantada em cantonense pela lendária banda de Hong Kong “Beyond”, que assim prestou homenagem a Nelson Mandela; e ainda o tema em mandarim, do cantor chinês de etnia coreana Cui Jian, “Não tenho nada em meu nome”, como traduz a Lusa, ou “Não tenho nada”, nome dado pela Agência Estado do Brasil. Estas duas canções simbolizam a liberdade dos jovens da geração dos meus pais, com letras onde a palavra “liberdade” é usada em cantonense e em mandarim, como se fosse algo particularmente precioso.
Curiosamente, podemos ouvir “Anos Gloriosos” numa série de televisão chinesa “The Galloped Era”, que conta a história da construção da linha ferroviária na República Popular da China e que foi transmitida recentemente, por ocasião do 70º aniversário da China comunista. É curioso porque este tema é muitas vezes cantado pelos falantes de cantonense como símbolo de liberdade. Já “Não tenho nada em meu nome”, uma canção de amor, terá sido cantada durante os eventos de Junho de 1989 em Pequim.
Há exactamente um ano, eu e a Mathilde convidámos a antropóloga visual americana Heidi Erickson e a artista iraniana Golnar Tabibzadeh para jantar em nossa casa em Berlim. Nesse serão, discutimos justamente as dificuldades e questões que a apropriação de conceitos de uma esfera cultural por outra levantam e, mais especificamente, a forma como o conceito de “liberdade” é interpretado e compreendido dentro e fora do universo cultural ocidental.
No contexto actual de hoje, a compreensão da apropriação do termo “liberdade”, enquanto conceito de origem ocidental, introduzido numa cultura não-ocidental, parece pertinente, sobretudo quando estamos mergulhados num processo de globalização intelectual e cultural. Sublinhar isso no nosso artigo pode ser uma forma de suscitar a curiosidade dos leitores. Este tema fica – sempre na modesta opinião deste vosso autor – um tópico de urgente debate para os interessados não-chineses e, acima de tudo, para os próprios sinófonos.


Foto de destaque: Carlos Gonçalves

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