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Medidas para tornar jovens “mais masculinos” geram controvérsia

March 1, 2021

Medidas para tornar jovens “mais masculinos” geram controvérsia

Novas directivas para tornar os jovens chineses “mais masculinos” vão aumentar o bullying, avisam activistas LGBT. As medidas fazem parte de um discurso nacionalista que visa pressionar a população e reverter uma crise demográfica iminente, dizem académicos.

“Todas as províncias e escolas terão de […] redobrar esforços para melhorar a qualidade dos professores de educação física” e reforçar a saúde dos estudantes.
Estas ordens, que se podem ler numa carta publicada no final de Janeiro pelo Ministério da Educação, pareciam inócuas. O problema é têm como objectivo “reforçar a masculinidade dos estudantes” e surgiram em resposta a uma preocupação de Si Zefu, membro do Comité Nacional da Conferência Consultiva Política: “prevenir a feminização” dos jovens.
Em Maio de 2020, o deputado ao principal órgão consultivo do país tinha defendido que os adolescentes chineses se tinham tornado demasiado delicados, tímidos e efeminados por terem sido educados sobretudo pelas mães e avós. Em apenas uma semana, as directivas foram mencionadas 1,5 mil milhões de vezes na rede social Weibo, o equivalente chinês do Twitter, sobretudo de forma crítica. “Os jovens também são humanos […], ser emocional, tímido ou delicado, são características humanas”, escreveu um cibernauta.
Outros preferiram fazer troça do plano, a começar pela comunidade LGBT. “Por que razão o Ministério da Educação anda sempre a querer reforçar a masculinidade? O pessoal lá não consegue encontrar ‘activos’ suficientes?” escreveu um cibernauta, referindo-se aos homossexuais que preferem ser dominantes durante o acto sexual.
Piadas à parte, o impacto da “natureza discriminatória” das directivas preocupa activistas como Wei Xiaogang, director do Queer Comrades, um programa dedicado à comunidade LGBT que é transmitido na Internet.
“Muitos estudantes cujas características de género não estão de acordo com a educação conservadora vão sofrer ainda mais no processo de formação da sua identidade e isso é muito perigoso”, disse o também actor e realizador ao EXTRAMUROS.
A proposta poderá ainda tornar ainda mais difícil a promoção da diversidade de género nas escolas, junto de estudantes que “podem nem sequer saber ainda o que é ser homossexual”, mas que no futuro terão de lidar com o facto de serem diferentes, sublinhou Wei.

Bullying e discriminação

Cai Yuan teme que as directivas agravem “de forma muito séria” o bullying nas universidades de homens vistos como “menos masculinos”. Os estudantes que não são heterossexuais são já “alvo frequente” de bullying, disse ao EXTRAMUROS o activista.
Uma jovem transgénero foi recentemente expulsa de uma universidade chinesa após ter sido alvo de intimidação não apenas dos colegas, mas também dos professores, recordou Wei Xiaogang.
Também no mercado de trabalho tem havido casos de discriminação devido à orientação sexual, acrescenta Cai Yuan. “Houve casos de funcionários públicos despedidos por terem saído do armário no Weibo”, diz o fotógrafo, conhecido pelos retratos de homossexuais.
Após estas directivas, a comunidade LGBT dificilmente pode contar com os tribunais para avançar na luta pela igualdade e contra a discriminação, nota Ke Li, professora de Direito na City University of New York, nos Estados Unidos. A investigadora falou com o EXTRAMUROS dias antes de um tribunal do leste da China ter rejeitado uma queixa sobre um manual universitário que descreve a homossexualidade como uma doença mental.
“Está longe de ser um segredo que o sistema judicial chinês é altamente susceptível a influências externas”, explica Ke Li. “Os juízes não vivem num vácuo, na verdade são muito vulneráveis às tendências e mudanças nas políticas públicas”.
A comunidade LGBT chinesa tinha apostado em cooperar com advogados em casos de litigação de interesse público. “A ideia era que se conseguissem forçar os tribunais a reconhecer os direitos de uma pessoa, seria o primeiro passo para mudar o imaginário social”, considera Ke Li.
“É deprimente”, admite a especialista em justiça criminal, sobretudo após sinais de abertura. A televisão estatal chinesa CCTV organizou recentemente “de forma surpreendente” um debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo género, lembrou.
Devido à posição do Ministério da Educação, Ke Li não espera que os legisladores chineses reconheçam o casamento homossexual e a transexualidade “num futuro próximo”. “Não vejo como é que esse tipo de avanço poderia acontecer”, lamenta.

Saúde e nacionalismo

Após a controvérsia, a imprensa estatal chinesa apressou-se a sublinhar que o mais importante era a saúde dos jovens, lançando uma série de artigos sobre iniciativas de promoção do desporto e exercício físico escolar no estrangeiro. “A saúde das crianças é um argumento muito poderoso”, disse ao EXTRAMUROS Dusica Ristivojevic, que recordou o tumulto causado pelo leite contaminado com melamina (um tipo de plástico) que, em 2008, envenenou 54 mil bebés, seis dos quais morreram. “Este tipo de argumento joga mais com as emoções do que com a racionalidade, sobretudo numa China pós-política do filho único”, acrescenta a investigadora da Universidade de Helsínquia, na Finlândia.
A ansiedade dos pais de filhos únicos já tinha levado ao surgimento, até 2015, de cerca de 250 campos de treino privados de estilo militar que prometiam transformar em homens “a sério” os jovens, muitos dos quais ainda nem tinham atingido a adolescência. Aspirações que lembram iniciativas semelhantes lançadas no início do século 20 para cultivar a masculinidade dos homens chineses, refere Derek Hird, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.
A primeira República da China, criada por Sun Yat-sen em 1912, estava “ansiosa” em adoptar noções ocidentais de género como uma forma de competir com o Ocidente e “construir uma nação-estado forte”, explica o professor de Estudo Chineses.
Dusica Ristivojevic acredita que as recentes directivas fazem parte deste processo de “individualização do nacionalismo” chinês: “fazer os corpos fortes para tornar a imagem da China mais forte”. E de facto mesmo o deputado Si Zefu avisara que a tendência de feminização dos jovens “iria inevitavelmente colocar em perigo a sobrevivência e o desenvolvimento da nação chinesa”.
Uma posição que encontrou algum apoio nas redes sociais. “É difícil imaginar que rapazes efeminados possam defender o seu país quando uma invasão exterior se aproximar”, defendeu um cibernauta.
Esta preocupação, disse ao EXTRAMUROS Charlie Zhang, professor de género e sexualidade na Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, nasce das críticas do Ocidente – e não só – sobre a alegada concorrência desleal e expansão militarista no Mar do Sul da China. Após o chamado “século de humilhação” de derrotas e ocupação estrangeira que antecedeu a revolução de 1949, a China quer projectar uma imagem de poder, avalia Dusica Ristivojevic, dando como exemplo a atitude combativa dos diplomatas chineses, estilo “lobo guerreiro”.

“Más influências”

Outra estratégia nacionalista “para manter a estabilidade interna é constantemente criar ameaças, inimigos externos”, realça Charlie Zhang. Ou seja, o Partido Comunista Chinês tem procurado culpar “más influências” vindas de fora pela alegada feminização dos jovens.
No início dos anos 80, a culpa era das estrelas da música pop de Taiwan, lembra Derek Hird. Hoje são as bandas sul-coreanas do K-pop e o género cultural homoerótico japonês Boys’ Love, que se tornaram populares entre as mulheres chinesas, acrescenta Charlie Zhang.
Os cibernautas chineses culpam também celebridades locais conhecidos como 新鮮肉 (‘xīnxiān ròu’), que literalmente significa ‘carne fresca’. Nesta categoria de símbolos sexuais vistos como bem aprumados e delicados inclui-se a banda TF Boys e o cantor Lu Han.
Há, no entanto “uma resistência a aceitar diferentes modelos de masculinidade como sendo indígenas”, avalia Derek Hird. Isto apesar da China ter tido ao longo da sua história visões alternativas do homem ideal, acrescenta o académico, referindo que uma das figuras masculinas icónicas do Confucionismo era 才子, (cáizǐ), o ‘intelectual frágil’, que não era definido pelo seu físico, mas sim pela paixão pelo estudo e “que era muito apreciado pelas mulheres”.
Mesmo nos anos 80 o Partido Comunista serviu-se da selecção feminina de voleibol para promover “uma imagem masculinizada de uma mulher independente e capaz de trabalhar no duro”, acrescenta Charlie Zhang. Derek Hird acredita, porém, que a China está actualmente a assistir a uma reacção contra a erosão dos papéis convencionais de género, algo que inclui as directivas do Ministério da Educação.
O movimento #MeToo, a visibilidade da comunidade LGBT e maior activismo das mulheres, nota o académico, criaram, “numa parte da sociedade, ansiedade sobre a desestabilização da ordem de género”.

Crise demográfica

“Há mais 70 milhões de homens do que mulheres neste país”, sublinhou um cibernauta chinês em reacção às directivas do Ministério da Educação. “Nenhum país no mundo tem uma proporção de sexo tão desequilibrada. Isso não é masculino que chegue?”
Este desequilíbrio foi criado pela política do filho único, que criou um outro problema. A população chinesa vai começar a encolher de forma “imparável” a partir de 2029, após atingir um pico de 1,44 mil milhões, alertou a Academia Chinesa de Ciências Sociais há dois anos.
O Partido Comunista já tinha abolido a política do filho único em 2015, permitindo a cada casal ter dois filhos, mas nem isso travou a queda no número de nascimentos, recorda agora Charles Zhang.
A 18 de Fevereiro, a Comissão Nacional de Saúde anunciou que as três províncias do nordeste da China, as mais afectadas pelo envelhecimento populacional, podiam “explorar” novas políticas para reverter o problema.
Poucos dias depois a Comissão viu-se forçada a sublinhar que isso não significava o fim das restrições à natalidade.
Charlie Zhang acredita que as directivas do Ministério da Educação fazem parte de um “regime regulatório de género e de sexualidade” imposto para enfrentar a “crise demográfica”. O investigador lembra que já em 2007 as autoridades tinham lançado uma campanha de propaganda para pressionar as solteiras com mais de 27 anos, conhecidas como “mulheres que sobraram”, a casarem-se e constituírem família.
Nos últimos “três ou quatro anos”, acrescenta Ke Li, o regime comunista colocou maior ênfase na família, devido a uma preocupação “muito prática”: “Como encorajar os jovens casais a terem mais filhos?”. E na semana passada, a Comissão Nacional de Saúde reiterou que as mulheres solteiras não podem congelar os seus óvulos porque isso iria fazer que com elas tivessem filhos “ainda mais tarde”.
Ora, a comunidade LGBT é “especialmente ameaçadora do plano demográfico” das autoridades chinesas, sublinha Charlie Zhang, que os consideram “incapazes de se reproduzirem” e assim aumentarem a taxa de natalidade.
O investigador acredita que isso explica a recente repressão da comunidade LGBT, que inclui o adiamento por tempo indefinido da marca Xangai Pride.
O Partido começou também, lamenta Charlie Zhang, a pedir aos universitários que identifiquem colegas que julguem ter uma orientação sexual alternativa. “Há casos muito mediáticos de estudantes punidos por saírem do armário”, acrescenta.


Foto de destaque: “The Fall”, de Sakuraway (pseudónimo de Cai Yuan)

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