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Apontamentos de viagem – Lianzhou

January 7, 2020

Apontamentos de viagem – Lianzhou

Lianzhou (连州) quer é livrar-se do cheiro intenso a miséria e urina, desfazer-se dos esgotos a céu aberto, das casas em ruína, ainda habitadas e geladas no Inverno, dos galinheiros, dos velhos estábulos, da merda. É mais ou menos isto que me diz uma mulher com quem me cruzo num pátio em silêncio, carne e roupa a secar no mesmo estendal improvisado, “São decadentes”, atira-me com desprezo quando deixo elogios às velhas mansões do centro da cidade, onde ainda vive uma grande parte da população local. “Bonitas, mas decadentes”, reforça a mulher.
Paralisada por este nosso brevíssimo encontro, deixo-me ficar durante não sei mais quanto tempo no lugar onde estou, imóvel, até que o Carlos aparece e me leva dali. Então a velha, mãos nas costas, sorri.

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Entre estes casarios, foi construído há cerca de dois anos o Museu de Fotografia de Lianzhou (连州摄影博物馆), único espaço museológico público na China dedicado exclusivamente à fotografia contemporânea. Sobre o projecto, assinado por um escritório de arquitectura de Guangzhou, leio que procurou criar o mínimo de tensão com o espaço envolvente e adaptar-se à zona histórica da cidade, que preserva traços da China republicana (1912-1949). Para isso, valeu-se da matéria local e de fragmentos da velha Lianzhou: telhas que sobreviveram à demolição de outras estruturas, janelas de madeira de um armazém de doces que ali existiu. Este conjunto de dois blocos que dão forma ao museu – um edifício moderno erguido de raiz e o tal armazém de doces recuperado – marcou então o início de um plano de revitalização para o centro da cidade.
Mas agora que passeio pela baixa de Lianzhou, este plano de revitalização, em nome da modernização e do desenvolvimento, parece-me antes um infortúnio. Homens e máquinas atiram-se em força ao trabalho e à transfiguração da cidade, fazem por restaurar (ou reproduzir!) velhas fachadas, arcadas, ruas antigas, que hoje estão imundas, com sobras de tudo, de comida, plástico, roupas, tecidos, beatas de cigarros, um baralho de cartas ou o que resta dele. No ar, persiste uma fina – e violenta – camada de poeira. E eu volto a pensar na mulher do pátio e como provavelmente nunca escapará por completo à miséria.

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Mapa da província de Guangdong, no sul da China / EXTRAMUROS

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A quatro horas de autocarro de Guangzhou, esta cidade de 500 mil habitantes não aparece no meu guia sobre a China nem nos itinerários turísticos que encontro na internet em inglês. Ainda no comboio, entre Zhuhai e Guangzhou, escrevo a uma amiga chinesa a perguntar se já ouviu falar de Lianzhou – responde que não. Faço então uma breve pesquisa na internet. Sobre a história mais recente, leio que o controlo de Lianxian – assim era chamada no passado – foi tomado do Partido Nacionalista Chinês (Kuomintang) pelo Exército de Libertação Popular em Dezembro de 1949, ano em que Mao Zedong subiu ao poder e fundou a República Popular da China. Antes disso, em finais da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), a introdução de técnicas agrícolas avançadas ajudou a impulsionar o desenvolvimento social local, fazendo da região “uma ilha de estabilidade entre a barbárie, um ponto brilhante entre o desperdício”, como escreveu o poeta e filósofo chinês Liu Yuxi.
Lianzhou foi, de resto, um destino cobiçado por políticos, académicos, generais e poetas chineses, que aí introduziram “um pensamento e cultura progressistas”. Ainda um detalhe interessante sobre a presença de intelectuais nesta cidade: Durante as dinastias Tang (618-906) e Song (960-1279), mais de 70 académicos locais passaram os exames imperiais, atribuindo a Lianzhou a reputação de ‘casa dos académicos confucionistas’.
É tudo o que encontro numa busca rápida que faço durante a viagem.
Chegamos ao nosso destino num sábado à hora de almoço. Ao longe, a cordilheira de Nanling (南岭, literalmente “montanhas do sul”), que separa a bacia do Rio das Pérolas do Vale do Yangtzé e se estende às províncias de Guangxi, Jiangxi e Hunan. Lianzhou, profunda nesta cadeia montanhosa, parece afastada de todo o mundo.

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Da extremidade da rua Zhongshan Nan, principal artéria da cidade, olho Lianzhou enquanto volta à vida, renasce incompleta, como se entre as obras, o ruído e a poeira se tivesse perdido qualquer coisa para sempre. Precisamente o que senti quando visitei Fenghuang, Zhang Guying (ambas na província de Hunan) ou Cuandixia (aldeia perto de Pequim), só para dar três exemplos de lugares que me vêm à memória sem dificuldade enquanto escrevo estas notas.
Mas há muitos outros casos – Nangang (南岗), por exemplo. Situada no condado de Liannan (连南), esta incrível povoação da dinastia Song, enclave da minoria étnica yao, fica a cerca de 50 quilómetros de Lianzhou. Para entrar em Nangang, também chamada de Qiannian Yaozhai (千年瑶寨 vila milenar da minoria yao), é obrigatório comprar bilhete – são 80 yuan. A povoação, assente no topo de uma escarpa rochosa, a 800 metros acima do nível do mar, é hoje uma espécie de parque de diversões: os locais dedicam-se a actividades ligadas ao turismo, servem de guias, dançam músicas tradicionais para os visitantes, exploram restaurantes com menus da região, ou simplesmente deixam-se estar vestidos nos trajes dos yao para serem observados – a habitual ‘exotização’ das minorias étnicas chinesas, apresentadas de fatos brilhantes e coloridos, a dançar e a cantar músicas tradicionais, a alimentar a narrativa de um país multicultural e multiétnico, onde a tradição, os usos e costumes são invariavelmente respeitados. Um dia voltarei a este tema.

Rua Zhongshan Nan, Lianzhou

“Querem um quarto”, pergunta-me um polícia à entrada de Nangang, e eu respondo que só vamos passar ali a tarde, “Se precisarem de um carro para regressar a Lianzhou, venham ter comigo”, volta à conversa o agente. E mal começamos a subir as escadas que nos levam ao ponto mais alto da aldeia, começamos a ouvir o som da maquinaria, da restauração de um telhado, da reconstrução de uma antiga moradia.
Nos alpendres, suspensos, cartazes chamam a atenção dos turistas que querem passar ali uma noite; pelo caminho, um café (sem máquina), um negócio de frutos secos, de produtos locais, trajes tradicionais, bijuteria, um grupo de jovens que, em círculo e vestidas a rigor, cosem pequenas peças de roupa.
Afastamo-nos da via principal, cruzamo-nos com uma mulher a transportar lenha, roupa tons neutros, e que põe a mão à frente da cara, não quer ser fotografada, diz. Não há como não sentir que estamos num espaço que não é nosso.

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Finalmente, uma nota sobre o Festival Internacional de Fotografia de Lianzhou  (连州国际摄影年), razão pela qual descobrimos esta pequena cidade no Norte da província de Guangdong. O evento, que teve a capacidade de fugir dos grandes centros urbanos chineses, foi criado pela dupla Duan Yuting (China) e François Cheval (França) – são eles também os fundadores e directores do museu de fotografia. Lin Wenzhao, antigo presidente da Câmara de Lianzhou, sugeriu em 2005 a Duan Yuting, então editora de fotografia numa revista em Guangzhou e com ligações ao Festival Internacional de Fotografia de Pingyao, que organizasse um evento fotográfico e estabelecesse um marco cultural na esquecida Lianzhou.
A 15.ª edição deste festival (pode ler mais aqui ou aqui), decorreu entre 29 de Novembro e 3 de Janeiro, e dividiu-se entre o Museu de Fotografia de Lianzhou, o antigo celeiro da cidade e a velha fábrica de sapatos. Fica aqui a sugestão para a próxima edição.

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Deixamos o museu de fotografia em direcção ao mercado. Outdoors gigantes e pósteres do festival de fotografia espalhados por todo o lado, em contraste com as frases patrióticas, tons vermelhos, que decoram os muros da cidade. À porta da Igreja Cristã de Lianzhou, ergue-se a bandeira chinesa. Poeira e ruído ainda no ar. Pedaços de carne continuam a secar à janela, nos estendais, sobre as cadeiras e mesas que se atravessam no caminho.