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Xinjiang, a nova fronteira (I)

August 3, 2018

Xinjiang, a nova fronteira (I)

É impossível não pensar no meu herói uigur que lia romances em inglês. Ele que finalmente teve direito a um passaporte, saiu da China, provavelmente para nunca regressar. Ainda me escreveu sobre o sonho americano, enviou uma foto quando teve o primeiro filho, emails que acabei por imprimir e guardar com o cuidado de quem protege um tesouro.
Quando finalmente saiu do país, imaginei várias vezes o meu herói a renascer, a libertar-se do ventre materno, do cordão umbilical, a ganhar sentidos, olhos grandes, azul violeta, mãos pequenas a tentar alcançar a luz do sol, depois o mundo. Azat, nome fictício, não vai regressar a casa.
São dez e vinte e um da manhã em Macau, céu cinza, grave, que por fim se abate a meus pés. Entro num café, peço um expresso, Philip Glass ao piano no youtube.
Conheci Azat em Pequim em 2012 na cafetaria da universidade onde estudávamos, neve lá fora, tardes à volta dos meus trabalhos de mandarim. Escrevi na altura uma crónica sobre o nosso último encontro no bairro de Dongwangzhuang, no norte da capital chinesa. Confidenciou-me Azat que tinha comprado a versão inglesa do “Prisioneiro do Estado”, diário secreto de Zhao Ziyang, obra proibida na China. “Li tudo em dois dias, porque tinha medo de viajar com o livro, e depois voltei à livraria, expliquei bem a situação e pedi que me deixassem trocar por outro”, disse-me na altura.
Zhao Ziyang foi primeiro-ministro da China e secretário-geral do Partido Comunista entre 1980 e 1989, ano em que caiu em desgraça por se opor à repressão estudantil, que culminou no massacre de Tiananmen. Enfrentar a linha dura custou ao estadista chinês a liberdade, permanecendo em prisão domiciliária até morrer, em 2005.
Azat, homem feito, casado, com 30 anos, medo, um livro às escondidas. Lembro-me de chorar ao chegar a casa.
Quando finalmente decido visitar Xinjiang, volto a escrever-lhe. De longe, e enquanto durmo, o meu herói responde. Reproduzo aqui a última parte: “Não sei se tens seguido as notícias sobre a região, mas o governo começou no ano passado uma campanha para deter um grande número de uigures – quase um milhão – em campos [de reeducação]. A situação da segurança está extremamente apertada, ergueram-se estações policiais em todos os quarteirões na maioria das áreas urbanas. Para muitas pessoas, a região tornou-se numa prisão a céu aberto”.
Completa assim: “Se a situação não fosse tão grave, apresentava-te algumas pessoas, mas neste momento, só o facto de se falar com um estrangeiro pode ser considerado crime e fazer com que as pessoas sejam enviadas para os campos”.

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Chegamos a Urumqi de comboio e ainda com uma faca na mala. É um canivete maior do que o habitual, que comprei em Xining para cortar fruta durante a viagem.

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Xinjiang (新疆 “nova fronteira”); nome completo: Região Autónoma Uigur de Xinjiang (termo utilizado pelo governo da RPC) ou Turquestão Oriental (para quem defende a independência). Refiro-me aqui à região como Xinjiang, termo que se convencionou entre os meios académicos e a comunicação social.
Olhando no mapa: zonas montanhosas traçam em parte os limites do território, que corresponde a um sexto da China. A Noroeste, a Cordilheira de Altai separa a região da Rússia e da Mongólia; a Nordeste, as Montanhas Celestiais (tian shan) marcam a fronteira com o Cazaquistão e o Quirguistão, dividindo também Xinjiang horizontalmente e fazendo com que o Norte e o Sul tenham sido ao longo de séculos observados como duas partes distintas. No Norte, encontra-se a Bacia Zhungaer – estepes e áreas semidesérticas – e é aí que está localizada a capital Urumqi. Aqui, os chineses de etnia han têm estado em maioria, sobretudo após a migração em massa que se deu a partir de 1949, quando Mao Zedong subiu ao poder.
Já abaixo das Montanhas Celestiais situa-se a Bacia do Tarim, dominada pelo deserto de Taklamakan e onde habita a maioria uigur, povo de origem turcomana, maioritariamente muçulmano, e uma das 56 minorias étnicas presentes na China (curiosamente verifico que o dicionário online que costumo consultar define uigur como “o povo do Turquestão Oriental e de algumas regiões do Cazaquistão e do Uzbequistão”).
A tensão no território, absorvido pelo império chinês no final do século XIX, agravou-se com o contínuo êxodo de imigrantes han para a região. Ao longo das últimas décadas, a comunidade uigur tem vindo a acusar as autoridades chinesas de discriminação económica e de impor tradições em detrimento da cultura uigur.
Compro o China’s Forgotten People: Xinjiang, Terror and the Chinese State, escrito por um dos poucos jornalistas estrangeiros que viveu na região. “No terreno, o jornalista Nick Holdstock dá conta de um aumento do terrorismo em Xinjiang e da resposta do governo aos ataques”, leio numa introdução à obra. Voltarei aqui mais tarde.

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Não pode andar com facas, estão proibidas em Xinjiang, diz um homem que partilha connosco a cabine no comboio. Não aceite facas, não compre facas a uigures, avisa. Sobre os uigures, acrescenta: são diferentes, são muçulmanos.
Três polícias à porta, de onde vêm, porquê, para onde vão, perguntam, e revistam a minha mala, examinam as bainhas das minhas calças, fotografam papéis, documentos, isso é roupa interior, aviso, e então pedem-me o telemóvel, olham as fotografias, isso é privado, não pode fazer isso, volto a alertar, e o agente hesita, olha brevemente para a galeria de fotografias, devolve-me o telefone.
Da janela, o sol põe-se, para trás a província de Qinghai, entramos em Gansu, céu tons laranja, e da terra, nada, estéril, flores de plástico à cabeceira. O nosso companheiro de viagem regressa sempre ao diálogo, tem de perceber que a polícia não faz isto contra vocês, mas para vos proteger, continua, e vai dando renovados conselhos, que não viajemos sozinhos, mas com uma agência de viagens, que não vale a pena atravessar o deserto de Taklamakan de autocarro, antes de avião, e as assistentes de bordo sorriem enquanto tiramos fotografias, entregam-nos um folheto com um plano de viagem para Xinjiang de três, sete, quinze ou mais dias, sempre na companhia de um guia. Guardo na mala, não volto a olhar para ele.
Dezassete horas depois, na chegada a Urumqi, onde está a faca, pergunto ao Carlos ao sair do comboio, deixei lá dentro, diz-me, não sei o que podem fazer com ela, noto, e voltamos a guardá-la. Ainda faço uma tentativa de a entregar à chefe das assistentes de bordo, que rejeita de imediato, assustada, são proibidas aqui, avisa, e dá o conselho: deixe que a polícia a encontre espontaneamente.
A faca passa incólume pelos detectores de metais da estação de comboio, pelos primeiros interrogatórios policiais, e na recepção do hotel também ninguém a quer, guarde-a em segurança, avisam-me, e eu chego ao quarto, lavo-a, experimento limpar as minhas impressões digitais, embrulho-a num guardanapo, coloco-a no cofre. Só uns dias depois, quando estivermos em Kuqa, será confiscada pela polícia.
O medo, uma semente cuidadosamente plantada. Lembro-me de Azat, que tinha medo de viajar com um livro.

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No poder, Mao Zedong teve oportunidade de controlar até o tempo, acabou com os vários fusos horários, uniu a China a um só relógio, Beijing time, vamos ouvir dizer muitas vezes aqui. Chegamos a Urumqi às oito e dezoito da manhã, ninguém nas ruas, silêncio, vazio. Os relógios de Pequim são respeitados nos espaços públicos, são eles que ditam as horas nas estações de comboio, aeroportos, hospitais, departamentos públicos. Existe, ainda assim, uma hora não oficial e para alguns ainda são seis e dezoito da manhã. As escolas abrem as portas por volta das dez.

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Urumqi acorda entretanto de muros altos,  a cidade em construção, quilómetros de arame farpado, bandeiras chinesas à porta do comércio – num cartaz lê-se “piedade filial, virtude chinesa”, vê-se uma criança a lavar as costas do pai, o pai a lavar os pés ao avô. E depois a polícia, cada quarteirão com uma estação policial, agentes armados patrulham as ruas, o acesso aos bairros antigos vedado – só é permitida a entrada de moradores identificados – e as mesquitas fechadas, o comércio, a hotelaria, a restauração com detectores de metais à entrada, o Grande Bazar com um Carrefour. Encontramos refúgio no Parque de Hongshan, no topo de uma roda gigante, onde, por momentos, tudo parece voltar ao normal.

hongshan park

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Olhos azuis, claros, cobalto, verdes, poderia ser eu, castanhos, amêndoa, pele escura, ou clara, nariz fino, curto, adunco, e o cabelo é por vezes liso, permanece solto, preso por um elástico ou coberto por um chapéu uiguir, a doppa, por um véu amarelo, flores bordadas, lantejoulas, às riscas, simples, e eles até podiam ser latino-americanos, e do Leste Europeu, e da Rússia, Cazaquistão, Sudeste asiático, ou mesmo daqui. Neste antigo centro comercial de quatro, cinco andares, em Urumqi, numa fila a aguardar a vez para passar pela segurança, cabe o mundo inteiro.

(continua…)

 

Pode ler aqui sobre o início desta viagem.

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