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Doomsday Hotel

November 10, 2017

Doomsday Hotel

Doomsday Hotel, obra de Wong Bik Wan, autora de Hong Kong, foi escrita em cantonês e tem tradução de M. Klin. O título aponta directamente para o espaço onde se passa a história, que fala sobre diversas gerações macaenses a viver em Macau e com o destino associado a um hotel.
Trata-se do Bela Vista, um hotel de referência nos tempos antigos. Originalmente uma fazenda construída em 1870, foi posteriormente comprada pelo capitão britânico William Clark, passando a ser funcionar como unidade hoteleira em 1890 e mantendo algumas das antigas fortalezas. O hotel mudou várias vezes de mãos e foi alterando a sua função: foi escola secundária, abrigo e assim por diante, em tempos de guerra ou de paz. Na década de 1980 voltou a ser hotel e, em 1992, foi convertido em hotel de cinco estrelas, com apenas oito quartos. Fechou em 1999. Hoje, este edifício é a residência do Cônsul-Geral de Portugal em Hong Kong e Macau.
A história deste espaço é contada pela autora, mediante narração de diversas gerações macaenses que administraram o local. Neste relato, são as estórias associadas ao hotel que alimentam a novela, apresentando as vicissitudes históricas macaenses. Trata-se, inegavelmente, de uma obra dedicada a Macau, tal como afirma a autora na contracapa da novela.

“A estória não passa de um resumo acidental da vida. Em 1986 fui ao hotel Bela Vista, que hoje já está fechado. A partir de então, estive frequentemente em Macau. Uma vez estive num hotel, adaptado a partir de uma casa antiga. No hotel, enquanto escovava os dentes, descobri que na base do copo de água estava escrito “The End”. No frasco do sabão encontrava-se o termo bíblico “hevel” (vãs, fúteis). Alguém me disse que o filho do gerente deste hotel teve cancro de sangue. Com estas memórias que me acompanham ao longo do tempo, resolvi escrever “Doomsday Hotel”. Depois fui a Lisboa, numa tentativa de enriquecer esta estória com mais enredos. Mas acabei por não acrescentar nada, porque a própria estória se recusou a ser tocada, mesmo por mim, autora. Portanto, apresentei esta novela na sua forma original. A novela assume a vida e orgulha-se dela mais do que nós, pela permanência e liberdade: à novela é dado o que nós não conseguimos. Então devo escrever.”

Por mim, pretendo analisar esta novela a partir do ponto de vista de leitura, que salienta a poética desta obra disponibilizada pela autora, porque na leitura se sente a apreciação das culturas únicas de Macau.

Primeiro, a poética desta obra reflecte-se nos estrangeirismos – uso de palavras, expressões e construções estrangeiras que a autora pretende criar, através da introdução de palavras vindas de outros idiomas (neste caso, português) na sua escrita. Cito um parágrafo representativo desta obra, bem como a sua tradução em inglês (publicada em simultâneo com a obra em cantonês), a fim de permitir ao público melhor entender a presente abordagem. Esta vai concentrar-se na obra em cantonês, enquanto a sua tradução em inglês serve somente como referência.

LP – Língua de Partida (Cantonês)

儲物室是他的伊比利亞半島,在這裏有包紮的舊鋼琴好像一個舊傷口,銀餐具燭臺,和最困難時期他都沒有用過,里斯本訂來的玫瑰蠟燭,一箱馬介休魚阿梅爾達上尉送給大使、慶祝酒店開張的一幅萬福瑪莉亞哭泣圖阿方索在濕黴的儲物室低頌《垂憐經》, 上主垂憐,基督垂憐(黃碧雲)。

LC – Língua de Chegada (Inglês)

the Store Room was his Iberia Peninsula, there was the old piano bandaged up like an old wound, silver culteries and candle sticks, and those he did not use even in the most difficult of times, the rose candles ordered from Lisboa, a case of bacalhau, the painting Ave Maria Lagrimosa, a gift from Captain Almeida to the ambassador for the opening of the hotel, Alfonso was inside the damp and mouldy room quietly reciting Kyrie Eleison, Lord have mercy on us, Christe Eleison

(Wong Bik Wan, tradução de M. Klin)

Os leitores chineses que não conhecem a realidade de Macau poderão ter a ilusão de que esta obra de Wong é capaz de ser uma obra de tradução, uma vez que a leitura vem sempre interrompida por nomes que lhes são estranhos. Sem explicações sobre estes estrangeirismos, o texto de Wong apresenta uma abstracção mental que dificultará a imaginação da cena cinematográfica que se associa ao hotel. Para alguns, esta novela poderá ser uma obra de tradução presumível. Mas é de clarificar, o texto de Wong é escrita dela e não é tradução.
No entanto, esta alegada pseudo-tradução abre caminho para uma outra leitura que queira inteirar-se da realidade de Macau, da sua história e dos seus habitantes macaenses. Tal escrita codificada pelos estrangeirismos acrescenta o prazer de uma leitura alternativa. É verdade que a transliteração dos nomes próprios representa, em certa medida, o “choque cultural” entre as duas realidades coexistentes em Macau, mas este “choque” poderá constituir um bom ponto de partida dos motivos literários para a literatura de Macau. Optando por usar “Avenida de Almeida Ribeiro” em vez de “San Ma Lou (significa literalmente Rua Nova)”, a autora mantém o estrangeirismo que suscitará na leitura o prazer de descodificação das culturas únicas de Macau. Como fenómeno das primeiras actividades de tradução em Macau, como testemunho dos primeiros contactos e convivência das duas culturas, portuguesa e cantonense, este “choque cultural” passa a ser consagrado em Macau e torna-se parte integrante da cultura singular de Macau. Na leitura, a poética da escrita reflecte-se na descodificação deste “choque cultural” – estrangeirismo.

Configuramos nesta obra, ainda, uma segunda vertente da poética – metáfora. Exemplos incluem “borboleta” (que representa tempestade), “floating island” (o hotel), “iberian peninsula” (o armazém), “soil” (terra natal), etc. Estas figuras de estilo, na escrita da autora, poderão ser vistas como continuação do modelo estilístico defendido pelo hotel Bela Vista, uma vez que os seus oito quartos são denominados, metaforicamente, com títulos de poemas, como “mar português”, “a última nau”, “noite”, “tormenta”, “calma”, “antemanhã” ou “nevoeiro”, escritos num painel de azulejo. Merece a pena destacar o seguinte exemplo:

LP: 你祖父沒有再回到里斯本,他說我老了,泥土就是我的故鄉。

LC: Your grandfather never went back to Lisboa, he said I have grown old, the soil is my home.

Trata-se de uma citação das palavras de Mei Ching Née Law, avó do narrador macaense – “eu”. Nesta citação, “the soil” (a terra) é uma metáfora empregue por “your grandfather (o avô)”, para representar a casa, a terra natal e o lugar de afinidade, onde ele nasce, vive e morre. Esta expressão, simples mas firme, vem da boca de uma velha geração que transporta uma sabedoria de vida que se baseia nas experiências e reflexões realistas. Sendo uma imagem associada à origem e raiz, “the soil (a terra)” aponta ainda para a questão identitária dos macaenses que se discute ao longo dos séculos. Metáfora, neste caso, além de representar uma escrita poética, explora também, de maneira delicada, os tópicos sensíveis e inevitáveis para os macaenses.

Relativamente à terceira vertente da poética desta obra, optamos por abordar os seus elementos de tradução e não-tradução. Sendo uma obra que conta a vida dos macaenses ligada ao hotel Bela Vista, o Doomsday Hotel introduz muitos elementos de confronto e encontro de duas culturas – portuguesa e cantonense, que acontecem no dia-a-dia dos macaenses. Neste confronto e encontro, há momentos que podem ser traduzidos e também momentos que não podem ser interpretados pela língua. O seguinte parágrafo explica, vividamente, esta situação paradoxal:

LP: 你祖母羅氏美清,她的葡語不好,中國人不會發輕細之音,她跟著你父親唸,安達奴•地•關他爾的詩,時常陪伴我的熟悉的鬼/嚴肅,端正,古老,不喜談話/我曾經羞怯地問他你是誰,我所愛與憎恨的鬼/他說你們這些人呀/已經叫我千萬年做上帝/但我不知道我的名字;羅氏美清問,上帝為什麼沒有名字,我父親答,因為上帝的名字就是自己,詩人語言就是無聲之內…… 。

LC: Your grandmother Mei Ching née Law, she spoke Portuguese badly. Chinese could not pronounce those light and soft sounds, she read after your father, the poem of Antero de Quental.
Espectro familiar que anda comigo,/ É um espectro mudo, grave, antigo / Que parece a conversas mal disposto… / Só uma vez ousei interrogá-lo: / Quem és (lhe) perguntei com grande abalo) / Fantasma a quem odeio e a quem amo? / Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos, /Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos… /Mas eu por mim não sei como me chamo…
(The familiar ghost who accompanies me / Is a solumn, sober, ancient ghost, / Who doesn’t seem to like to converse…/ I dared to question him just once. / “Phamtom whom I hate and love, / Who are you? / I asked with shame. / He said, “Your felllow humans creatures have called me God for tem thousand years… / But I myself don’t know my name…)
Mei Ching née Law asked, why doesn’t God have a name, my father replied, because God’s name is Himself, the language of poetry is in the silence ….

O poema citado foi escrito pelo poeta português Antero de Quental. e traduzido pela autora em cantonês. A tradução ajuda os leitores a ter acesso ao poema, mas não garante que este seja entendido por parte dos leitores. Neste cenário, a avó chinesa – Mei Ching née Law, que fala mal aquela língua, não entende bem o poema português. Ela perguntou ao filho, que é macaense, por que Deus não tinha nome. O filho respondeu que o nome de Deus é ele próprio e que a língua do poema reside no silêncio. Obviamente a pergunta da avó revela a sua mentalidade chinesa, procurando uma resposta definitiva e concreta, porque não conseguiu configurar o sentido conotativo do poema português. A resposta do filho foi indirecta e ambígua, mas inteligente, chegando a explicar a forma de pensar portuguesa com uma filosofia chinesa – silêncio – uma abstracção taoista. Naturalmente a avó parou de perguntar e, no silêncio, o poema português percorre o sangue do filho macaense. Para nós, leitores, este diálogo entre avó e filho revela uma melhor forma de entendimento nos momentos de confronto e encontro das duas culturas. A resposta do filho representa uma tradução cultural.

Resumindo, sendo as três componentes da nossa leitura da obra “Doomsday Hotel”, o estrangeirismo, a metáfora e a tradução constituem a nossa interpretação relativa à poética, proposta por André Lefèvere – “what literature should (be allowed to) be”. Na abordagem da escritora Wong Bik Wan, esta poética revela a sua singularidade na literatura de Macau, que incorpora elementos exóticos mas já aculturados, explora metáforas ocidentais que recorrem ao Oriente e apresenta elementos de tradução, ora visíveis, ora invisíveis, mas sempre omnipresentes no confronto e encontro das culturas.

Sobre Wong Bik Wan:
Nascida em Hong Kong em 1961, Wong Bik Wan licenciou-se em jornalismo pela Universidade Chinesa de Hong Kong e obteve o seu mestrado em criminologia pela Universidade de Hong Kong. Tem ricas experiências de vida, trabalhando como advogada, jornalista e artista. Como escritora, foi galardoada na terceira e na décima segunda edições do Prémio Bienal da Literatura Chinesa de Hong Kong (prémio para novelas) e na quarta edição do Prémio Bienal da Literatura Chinesa de Hong Kong (prémio para ensaios). Distinguiu-se também no 6.º Prémio do Livro de Hong Kong e no Prémio “Sonho no Pavilhão Vermelho” da Literatura Chinesa Mundial em 2014.

(Com revisão é de Alda Mourão)

Sobre a obra

Título

末日酒店(Doomsday hotel)

Autor

黃碧雲(Wong Bik Wan)

Ano

2014

Edição

Cosmos Book Ltd.

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