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Representar quem é apagado

June 22, 2020

Representar quem é apagado

Marcos Chin foi um dos convidados para ilustrar a estreia de um novo documentário sobre Bruce Lee. O artista falou ao EXTRAMUROS sobre a influência da cultura chinesa e a falta de representação da comunidade asiática e LGBT+, em tempos de manifestações anti-racismo.

No início deste mês, a ESPN estreou o documentário “Be Water”, (‘Sê Água’), sobre o artista de artes marciais Bruce Lee Jun-fan (李小龍). Para marcar o evento, o canal norte-americano pediu ajuda a oito ilustradores, incluindo Marcos Chin. “Eu achava que o conhecia porque, quando estava a crescer em Toronto, todos os domingos à tarde, a televisão tinha um horário em que só havia filmes de kung fu”, começa por contar o canadiano ao EXTRAMUROS.
Mas ao ver o documentário, Marcos descobriu um outro lado de Bruce Lee: “Era realmente importance para mim representá-lo de uma forma forte, mas também poética, porque a forma como falava, os provérbios que usava, parecia um sábio”.
“Às vezes soava quase como o meu pai”, acrescenta o ilustrador, com uma risada.
O pai de Marcos nasceu na Beira, em Moçambique, para onde os seus antepassados tinham emigrado em 1927, vindos da província chinesa de Guangdong. Mas quando o país africano caiu numa guerra civil, após a independência, a família foi forçada a fugir para Portugal sem nada e, pouco depois, emigrou para o Canadá.
“Houve um momento em que eles pensaram voltar para Portugal porque os meus pais têm passaporte português e o inglês do meu pai não é muito bom. Foi difícil para ele encontrar um emprego no Canadá e acabou como porteiro numa fábrica”, recorda Marcos.
A família foi parar a um bairro multicultural de Toronto, onde viviam imigrantes das Caraíbas, Guiana, Índia, Paquistão, Filipinas e até uma família macaense, os De Lemos. “Era estranho haver nas redondezas uma outra família que também falava português embora fosse chinês”, diz o ilustrador.

Visão autêntica

Como muitos filhos de imigrantes, Marcos achou-se num “limbo – não era necessariamente canadiano e certamente não era chinês”, explica. Até na comunidade chinesa de Toronto o jovem “não encaixava bem”. “A maioria dos meus amigos chineses era de Hong Kong. Mesmo a nossa comida não era mesma. Por exemplo, a minha família sempre fez comida portuguesa, incluindo bacalhau”, recorda o artista.
“Na casa dos meus pais sempre tivemos aquele tipo de calendários e posters chineses, mas eu sempre os olhei de forma superficial, tirando alguma pouca informação que tinha sobre os deuses que lá estavam representados”, continua Marcos, admitindo: “Só mais tarde comecei a ter mais interesse na minha herança chinesa”.
Uma cultura que agora está presente na arte do canadiano, agora radicado em Nova Iorque, desde o Rei Macaco à Dança das Mangas Longas. Uma influência que ao início “não era consciente, mas que se tornou”, diz o ilustrador. “Percebi que na verdade é aí que reside o meu ‘poder’”, explica. “Parte da razão pela qual uma audiência ocidental aprecia o meu trabalho é o facto de eu não ser nascido e criado na China. As minhas imagens não são autenticamente chinesas, mas são autênticas de acordo com a minha visão e a minha experiência de vida”, acrescenta.
O artista ensina um curso de Ilustração na Escola de Artes Visuais, em Nova Iorque, sendo que muitos dos alunos vêm do estrangeiro. “Algo que lhes digo sempre é que todos temos o nosso próprio génio, e por vezes são as coisas que subestimamos que nos tornam especiais e diferentes. Creio que durante muito tempo eu pus de lado a minha etnia”, explica Marcos.

Longe dos ecrãs

A ilustração dedicada a Bruce Lee foi uma oportunidade para criar “um certo sentimento de ‘empoderamento’, de mostrar um outro lado do que eu acredito que os homens asiáticos podem ser”, diz o canadiano.
Marcos recorda uma adolescência em que eram raros os rostos asiáticos nos média e sempre como ajudantes – caso da personagem Kato, interpretada por Bruce Lee na série televisiva “Green Hornet” – ou estereótipos raciais. “As mulheres asiáticas eram fetichizadas e os homens asiáticos não conseguiam falar inglês, eram cómicos, feios e nada masculinos”, diz o ilustrador.
Os obstáculos que Bruce Lee enfrentou como um asiático “a tentar ter um impacto e interagir com uma audiência ocidental num espaço ocidental, é algo com o qual sinto que me consigo identificar”, diz Marcos. Ele lamenta como, quase 50 anos após a morte do mestre de artes marciais, a falta de representação da comunidade asiática nos média norte-americanos é ainda gritante.
Apesar da imagem dos Estados Unidos como um caldeirão de culturas, o artista diz que em Toronto o multiculturalismo estava muito mais presente nos media. “Era perfeitamente normal ver um homem do Sudeste Asiático com uma mulher branca num anúncio, mas essa é uma imagem que nos Estados Unidos provavelmente nunca se vê em campanhas publicitárias”, diz Marcos.
O ilustrador não tem pejo em dizer que intencionalmente procura incluir mais diversidade no trabalho que faz. “Faço um esforço especificamente para garantir que a pele das figuras é mais escura, que o cabelo não é loiro e que os rostos não são necessariamente caucasianos”, explica Marcos.

Vozes eliminadas

Além da ênfase numa maior representação de minorias étnicas, as obras de Marcos têm também como pano de fundo a sexualidade do artista. “Procuro sempre que não apareça logo em primeiro. Quero que as pessoas vejam primeiro as cores, as formas e continuem a destapar as camadas de significado”, explica o canadiano.
Já como professor Marcos assume abertamente a sexualidade. “Nas minhas aulas, gosto de incorporar a minha homossexualidade. Isto porque percebi, já há alguns anos, que não havia muitos ilustradores homossexuais. Era super dominado por homens brancos, heterossexuais”, diz.
“Aconteceu, talvez por duas ou três vezes, jovens ilustradores homossexuais virem falar comigo após as aulas e agradecer-me por mencionar isso. É por isso que o continuo a fazer, para abrir esse espaço,” explica o artista.
Marcos falou ao EXTRAMUROS numa altura em que Nova Iorque ainda vivia os protestos do movimento “Black Lives Matter”, contra o racismo sistémico nos Estados Unidos. “Trata-se de uma cultura criada por pessoas que estão no poder há tanto tempo que podem simplesmente eliminar outras vozes”, diz o canadiano.
De volta ao Bruce Lee: “Ele falou sobre isso, falou sobre o apagamento, sobre os produtores que não queriam deixar a personagem dele – o Kato – sequer falar. Ele foi intransigente na tentativa de dar voz ao ajudante”, recorda Marcos. “Creio que tudo isto acaba por estar ligado”.