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política e sociedade

O novo normal para a China

May 20, 2020

O novo normal para a China

FOTO: FabrikaSimf (shutterstock)

Mais teletrabalho, mais comunicação à distância e maior utilização de tecnologias como a inteligência artificial e o reconhecimento facial. São estas as novas tendências que dois empresários vislumbram na sociedade chinesa, após o pior da pandemia de covid-19.

Foi só no início de Abril que João Filipe Santos regressou ao escritório em Chaoyang, bem no centro da capital chinesa, Pequim. A pandemia de covid-19 “apanhou-nos um pouco de surpresa”, confessou ao EXTRAMUROS o fundador e director-executivo da Eureka Studios, que desenvolve aplicações para telemóveis.
Tal como milhões de outras empresas, a Eureka também teve de implementar o trabalho remoto. “No início houve sempre algum impacto. Em termos de comunicação é sempre mais complicado; especialmente para pequenas empresas que se calhar não têm tanto hábito ou sistemas já feitos para conversar e trabalhar normalmente”, admite João Filipe.
Beleza Chan enfrenta um outro problema de comunicação. “Os nossos engenheiros e a nossa equipa de marketing está na China e temos uma outra equipa na Nova Zelândia, mas eu estou nos Estados Unidos, num fuso horário completamente oposto”, explicou a co-fundadora e directora de operações da aplicação Chatterize ao EXTRAMUROS.
Quando surgiu o surto da covid-19, a brasileira decidiu sair de Pequim e voltar para junto da família em São Francisco. “O plano era ficar até meados de Abril, só que os países começaram a fechar as fronteiras, os voos cancelados”, lamenta Beleza, que ficou assim separada do marido indiano, que se encontra na China.
Uma incerteza que se estende a milhares de estrangeiros, que a partir de 28 de Março se viram proibidos de entrar na China continental, sem solução à vista. “Não sei se consigo voltar”, admite Beleza. “Estou esperando para ver o que vai acontecer”.

Escola “é mais do que aulas”

Ironicamente, a pandemia acabou por beneficiar o Chatterize, que utiliza grandes volumes de dados e inteligência artificial para permitir às crianças chinesas praticarem inglês com um ‘bot’ de conversação. Como “agora quase não tem professores estrangeiros na China”, diz Beleza, tem crescido o interesse pela aplicação, que chegou aos 10.700 utilizadores em pouco mais de um mês.
Com as crianças em casa, os jardins-de-infância e escolas de ensino de inglês estão à procura de conteúdo educativo disponível através da Internet que possam propor aos pais chineses. Algumas escolas têm proposto parcerias à Chatterize, “sem a gente correr atrás”, sublinha.
A brasileira acredita que a pandemia vai mudar a educação na China. Por um lado, “muita gente vai ver que muitas das actividades feitas de forma presencial podem ser feitas ‘online’ e que o tempo na escola pode ser usado de forma diferente”, diz Beleza. Ou seja, os pais vão perceber que “a escola é muito mais do que aulas, porque as crianças precisam de estar num ambiente para socializar”, acrescenta.
“Vai ter uma mudança dramática, tanto no jeito como a gente trabalha, convive e estuda”, prevê Beleza.

Distância personalizada

A mudança já tem beneficiado a Eureka Studios de João Filipe, sobretudo a aplicação MojiPop, que utiliza tecnologia de reconhecimento facial para criar um ‘avatar’, caricaturas, cromos e ‘emojis’ personalizados.
No caso dos serviços prestados a outras empresas, nomeadamente parques de diversões, a Eureka viu um “efeito de bola de neve” abater-se sobre as receitas durante a pandemia. Mas, na vertente virada directamente para o consumidor, o negócio “ficou ainda melhor”, garante João Filipe.
“As pessoas agora mais do que nunca, fechadas em casa, têm mais interacção com este tipo de funcionalidades e querem, através do seu ‘avatar’ social, tornar a conversa um pouco mais interessante ou mais engraçada”, diz o português.
Este tipo de aplicações vai crescer muito mais depressa na China do que no Ocidente, prevê João Filipe. Por um lado, o país lidera o desenvolvimento da quinta geração de telecomunicação, conhecida por 5G, “por isso as possibilidades em termos de tecnologia vão ser enormes”, diz o fundador da Eureka.
Por outro lado, na China há “uma onda um pouco mais optimista” em relação a aplicações que utilizem o reconhecimento facial e a inteligência artificial, diz o português. Ou seja, acrescenta, há mais informação disponível para fazer avançar este tipo de tecnologia, uma vez que os consumidores chineses estão mais dispostos a conceder acesso aos seus dados privados.

Maior produtividade

À medida que as semanas de quarentena se sucediam, a Eureka Studios acabou por descobrir no trabalho remoto uma produtividade “talvez até acima do que tínhamos antes”, diz João Filipe. Afinal, o teletrabalho também tem vantagens. “Estamos mesmo no centro de Pequim e para algumas pessoas se calhar era uma hora de metro para chegar cá”, sublinha o empreendedor.
O modelo de negócio de aplicações como a MojiPop ajuda. “Nós juntamos a tecnologia para dar poder à criatividade dos artistas. Temos artistas que criam os seus próprios conteúdos e isso é algo que obviamente que podem fazer directamente a partir de casa”, explica João Filipe.
A Eureka já dava alguma flexibilidade aos colaboradores, a maioria dos quais tem filhos pequenos, para poderem trabalhar de casa. A pandemia veio exacerbar esta tendência, dando uma oportunidade às aplicações criadas para ajudar as empresas a gerir o teletrabalho, como por exemplo a Zoom, diz João Filipe, admitindo que a gestão de pessoas em trabalho à distância é um desafio para qualquer empresa. Mas o trabalho remoto “tornou-se algo ainda mais normal” durante o surto, acrescenta o português. “A forma como vamos encarar essas coisas vai mudar muito com a covid-19”.