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Discriminação pós-isolamento atinge pessoas de Hubei

May 1, 2020

Discriminação pós-isolamento atinge pessoas de Hubei

As pessoas nascidas em Hubei, onde surgiu a pandemia do novo coronavírus, enfrentam discriminação no acesso ao emprego e habitação noutras regiões da China. Um fenómeno que se fará sentir ainda em 2021, alerta uma académica chinesa.

Austin trabalhava em Wuhan, capital da província de Hubei, no centro da China, como assessor jurídico numa empresa, mas já no ano passado tinha planeado mudar para uma cidade maior. “O nível salarial em Wuhan é muito baixo e o espaço para progressão na carreira muito limitado”, explica o jovem que preferiu não ser identificado pelo nome completo.
O surto do novo coronavírus, conhecido por Covid-19, que surgiu em Wuhan, acabou por adiar estes planos. No início de Abril, com as restrições ao movimento de pessoas a serem gradualmente levantadas, Austin começou a procurar emprego em Xangai, a mais populosa das metrópoles chinesas.
No entanto, as portas iam-se fechando abruptamente. “Nunca me disseram directamente que era essa a razão. Mas assim que dizia que ainda estava em Wuhan, usavam outras questões para me rejeitar”, conta Austin ao EXTRAMUROS.
A justificação mais frequente era que a empresa exigia que os funcionários vindos de Wuhan estivessem 14 dias de quarentena e por isso preferiam contratar alguém que já estivesse em Xangai. “Eu tenho um amigo que voltou para Xangai e regressou de imediato ao trabalho, sem ficar em isolamento”, sublinha Austin. Os procedimentos de cada empresa são diferentes, era a resposta.

Tratados “como um vírus”

“Há muito tempo que não víamos Wuhan,” dizia uma jovem, de regresso à cidade. “Onde estávamos, as pessoas de Hubei que estavam fora da província enfrentaram alguma discriminação. Espero que as pessoas não tratem os de Hubei como um vírus”, disse.
A “primeira vaga” de relatos de discriminação contra os naturais de Hubei surgiu no final de Janeiro e início de Fevereiro, logo após o início do surto, confirmou ao EXTRAMUROS Zhang Ran, professora da Universidade de Pequim.
Lêem-se ou ouvem-se relatos de pessoas nascidas em Hubei e que foram despejadas por senhorios ou presas em casas por vizinhos que barricaram as portas com tábuas de madeira ou barras de metal. Também de trabalhadores de Hubei despedidos em massa de fábricas, famílias barradas de ficar em hotéis e camionistas presos em auto-estradas durante dias.
Um receio que não desapareceu com a reabertura de Hubei, que permitiu a saída de milhões de pessoas da província. Surgiu então uma segunda vaga de relatos de discriminação no acesso ao emprego e à habitação, diz Zhang Ran.
Tal como aconteceu a Austin, muitas têm sido as denúncias, feitas sobretudo na rede social chinesa Weibo, o equivalente chinês do Twitter, de entrevistas de emprego que terminaram abruptamente assim que se fala de Hubei.

Zhang Ran, professora da Universidade de Pequim

Falta de informação

Até a imprensa estatal chinesa, que tem descrito o combate ao coronavírus como uma heróica vitória do Partido Comunista, se viu obrigado a abordar o assunto. “O medo crescente tornou o antivírus em anti-Hubei”, disse o Guangming Daily num editorial.
A luta contra a discriminação tornou-se “uma preocupação explícita no plano geral de reabertura” da China, diz Zhang Ran. Mesmo as políticas adoptadas recentemente para normalizar a entrada nas universidades públicas proíbem a rejeição de estudantes de Hubei, acrescenta a académica, que escreveu sobre a discriminação regional no acesso ao ensino superior na China.
A professora da Universidade de Pequim acredita que a utilização de tecnologia pode ajudar, nomeadamente o “código de saúde”, um serviço disponível nas aplicações para telemóvel mais populares na China, o AliPay e o WeChat. Acedendo a dados sobre as deslocações e estado de saúde do utilizador, gera um código, cuja cor ajuda as autoridades a determinar se a pessoa pode não circular livremente.
“No passado, quando as pessoas não estavam seguras sobre alguém, usavam um rótulo regional ou geográfico para as julgar”, diz Zhang Ran. “Neste momento, graças à tecnologia, pode ser mais transparente”.
Ainda assim, a académica admite que “por vezes não tem havido informação suficiente” para apaziguar o receio do outro como portador de uma doença invisível. No início deste mês o regime chinês admitiu que não tinha revelado publicamente os casos detectados de portadores assintomáticos do Covid-19 e, mais tarde subiu em exactamente 50 por cento o número oficial de mortos pela doença em Wuhan.

Mentalidade de “exclusão”

Por outro lado, Zhang Ran diz que a mentalidade “cautelosa e de alguma forma de exclusão” dos chineses não é algo novo. “Tivemos no passado muitos fenómenos de discriminação, como por exemplo discriminação regional ou contra os infectados por HIV” (Vírus da Imunodeficiência Humana), refere a académica.
Zhang Ran teme que possuir um cartão de residência, o chamado “hukou”, de Hubei, será um problema para quem estiver noutras partes da China “talvez este ano e no próximo”. “Especialmente para aqueles que procuram um emprego ou querem arrendar um apartamento”, acrescenta.
Mas a professora acredita que o estigma que paira sobre os naturais de Hubei irá eventualmente desvanecer-se, tal como aconteceu no caso da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla inglesa), que em 2002 eclodiu na província de Guangdong, no sul da China.
A entrevista telefónica com Zhang Ran é interrompida quando o filho de sete anos entra pelo quarto à procura das luvas para ir brincar na rua com os dois melhores amigos. “São os dois de Hubei e um deles até esteve lá durante as férias escolares de Inverno”, revela a mãe. “Mas já regressaram a Pequim há muito tempo”, acrescenta rapidamente.
As pessoas de Hubei não merecem ser discriminadas, sublinha Zhang Ran. “Especialmente as de Wuhan, que fizeram um tremendo sacrifício para o bem-estar dos chineses”, lembra a académica.


Foto de destaque: Estação de comboio de Wuhan, província de Hubei / Foto: Catarina Domingues