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cultura

Macau: “Geld, Geld, Geld!”

January 9, 2020
(em colaboração com Mathilde Denison Cheong)

Macau: “Geld, Geld, Geld!”

É com o meu velho Mac que escrevo desde há vários anos os meus artigos e nunca tinha perdido um único trabalho. Mas a tecnologia não é sempre tão inteligente quanto gostaríamos, e foi assim que um dia destes fiquei sem um artigo inteiro em que fazia uma reflexão sobre a vida enquanto peça de teatro – uma expressão cantonense. Aparentemente fui eu próprio que apaguei o ficheiro sem reparar. É uma pena, mas foi desta forma que acabei por me debruçar em pleno num outro tema que me interessa há muito tempo: a obscura presença de Macau num país onde vivo há já quase três anos, a Alemanha.

Tanto a China como Hong Kong são temas recorrentes na imprensa em língua alemã. Aí, a situação da China nos média é neste momento bastante delicada, principalmente desde os eventos dos últimos meses. Graças ao sagrado VPN, consigo acompanhar as notícias em alemão na China – estou temporariamente a viver em Hamcheu (Hangzhou) – o que me permite sobretudo manter a aprendizagem da língua e ir beber umas cervejas com os  amigos alemães daqui. No contexto da celebração da criação da Região Administrativa Especial de Macau, a NTV alemã deu o seguinte título à peça que fez sobre o assunto: “Xi Jinping visita Macau. Presentes para o mais bravo Hong Kong”. Na minha opinião, o que vejo como um presente é a quantidade de reportagens que surgiram sobre este assunto e que me dão a oportunidade de fazer algumas pesquisas sobre como Macau é compreendida pela imprensa alemã.

No fim de Novembro do ano que terminou, Jochen Faget, que escreveu, aliás, vários livros sobre Portugal, fez uma reportagem para a Deutschlandfunk Kultur, na qual entrevistou Scott Chiang da Associação Novo Macau e Larry So, antigo professor do Instituto Politécnico de Macau. Larry So foi depois citado várias vezes pela imprensa germanófona: Macau tem sido “desde sempre muito vermelha” (DPA, Agência de Imprensa Alemã) . Para a SRF, a germanófona Rádio e Televisão da Suíça, que citou Larry So, “a Macau vermelha floresce hoje ainda mais vermelha”.

À primeira vista, e na sequência desta quantidade inabitual de reportagens em alemão, Macau não parece ter uma imagem muito positiva. Se eu estivesse plenamente de acordo com estas reportagens, isso quereria dizer que estaríamos todos mais preocupados com dinheiro do que com a liberdade. Na ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen – Segunda Televisão Alemã, canal público), vemos mesmo o jornalista Ulf Röller a terminar a reportagem, no Cotai, entre os grandes casinos, declarando em voz alta: “Aqui, há apenas uma coisa que importa: Geld, Geld, Geld (dinheiro, dinheiro, dinheiro).” De certa forma, devo reconhecer que muitos em Macau não vêem como prioridade a liberdade diante do dinheiro. No entanto, às vezes sinto que faltam informações sobre uma outra realidade tão diferente quando não se explica, por exemplo, as diferenças existentes, nomeadamente no sistema de segurança social ou mesmo na evolução histórico-política de Macau e Hong Kong, já para não falar das diferenças culturais.

É enquanto doutorando – um título bastante respeitado na sociedade alemã – que voltei a Berlim em 2017. Como me considero sempre um principiante da língua alemã, não tinha a mesma ambição de fazer comentários em relação a esta matéria como já o fizera em Portugal. Ainda por cima, a Alemanha encontra-se culturalmente muito afastada de Macau.
Desde as primeiras apresentações dos documentários estudantis que produzi em 2013, na maior parte das vezes a convite do Instituto Camões, tenho falado sobretudo português em vez de alemão ou inglês. Este facto é uma das razões pelas quais tenho – na minha subjectiva opinião – uma impressão muito pessoal de que Macau parece ocupar um lugar de importância menor na sinologia alemã. Ao mesmo tempo, e graças à importância histórica de Macau para Portugal, tenho a oportunidade ainda hoje de poder apresentar-me com um intelectual de Macau e falante de português como língua estrangeira – estrangeira às minhas próprias línguas.

Ilustração de Ling-yu He

Há 12 anos, tive a oportunidade de entrevistar na Universidade de Munique o professor Roderich Ptak, sinólogo especializado na história de Macau. Desde os tempos do meu mestrado em Berlim, nas conversas mais sérias ou nas de café com conhecidos meus, tenho insistido sempre no facto de que Macau poderia ser um caso interessante no quadro de investigações teóricas sobre o pós colonialismo. Sinto, por outro lado, um certo “orgulho” – coloco entre aspas porque não gosto desta palavra – quando penso que comprei quase todas as cópias existentes da versão alemã do livro de fotografias “Macau” (1992) de Werner Radasewsky e Günter Schneider (fotos) e Teresa Borges da Silva (textos) nos alfarrabistas berlinenses – cópias que ofereço aos meus caros amigos berlinenses bem como às pessoas que admiro, dizendo: os textos têm de ser lidos criticamente, mas as imagens fazem parte da minha infância, nesta exótica mistura de culturas e Macau ainda dos tempos coloniais.

Quando a minha terra é referida na imprensa de língua alemã, vê-se em geral quase uma exclusividade dos temas da economia. Foi por isso que fiquei mais ou menos surpreendido quando vi tantas reportagens em alemão respeitantes ao 20º aniversário da RAEM. Foi também isso que me incitou a escrever o presente artigo. Ao ver tantos testemunhos dos órgãos de comunicação social de Macau que celebram com satisfação este aniversário, a imprensa alemã e suíça parece não ser apenas crítica, mas também bastante severa. Principalmente os jornais de língua alemã partilham várias opiniões. Por exemplo, como Macau, aos seus olhos, possui “um estado de direito comparativamente robusto e uma imprensa livre” (Frankfurter Rundschau), embora por exemplo o Frankfurter Allgemeine não esteja muito de acordo. Escrevem ainda que “os comunistas tinham de facto já tido o controlo sobre a cidade muito antes da retirada dos portugueses” (NTV), ou ainda que “Macau é a China – e vai ser sempre a China” (Stuttgarter Zeitung).

É neste contexto de protestos em Hong Kong, que gerou polémica nos média de língua alemã e igualmente uma certa degradação da imagem da China na Alemanha, que podemos compreender por que Macau é considerado por vários jornais importantes alemães a “criança preferida” ou “a filha bem-educada da China”. Não sou especialista em temas relacionados com a imprensa, mas enquanto simplíssimo espectador e leitor em Berlim, vejo, por exemplo, na televisão documentários bastante suspeitos sobre a China. Esta suspeição não é um problema em si, porque é mesmo importante poder ficar desconfiado, olhar criticamente para os dois lados das coisas, mas diante desta (quase) exclusividade de trabalhos negativos, sinto-me às vezes um pouco perdido e questiono-me como devo encontrar um equilíbrio na selecção da informação.

Como é hábito, não me consigo calar. Por falta de espaço, terei de continuar em próximos artigos esta reflexão sobre uma matéria que me fascina: a compreensão de Macau na imprensa ocidental. Antes de concluir, gostaria ainda de abordar outro ponto. Parece-me que a grande diferença que pode existir entre as imprensas da Alemanha ou da Suíça e as dos países que foram no passado grandes poderes coloniais ou que têm ainda territórios ultramarinos, reside na particularidade dos seus pontos de vista. Como a Alemanha tem menos peso na história colonial, Mr. Wissen2Go precisou, por exemplo, de inventar um estado alemão imaginário (onde, por acaso, a língua oficial seria o português) para explicar o lugar particular de Hong Kong aos alemães. Atendendo ao escasso passado colonial da Alemanha – o país foi obrigado a abandonar Tsingtao após a primeira Guerra Mundial – algumas críticas alemãs fazem-me pensar no dilema entre a expressão chinesa “旁觀者清/旁观者清” (literalmente ao-lado-ver-quem-claro, páng guān zhě qīng, em mandarim, ou pong kun che cheng, em cantonense) – “quem vê de fora vê melhor” – e o que, diria eu, é a falta de percepção de quem possa estar por dentro. Diria mesmo que não é justo criticar a realidade de uma outra cultura tão distinta sem uma explicação sobre as diferenças culturais, mesmo que esta seja egocêntrica.

De qualquer maneira, é para mim importante perceber como a minha terra é compreendida lá fora. Estas reportagens, uma vez traduzidas nas nossas línguas, são um presente para este lugar que precisa sempre de ouvir opiniões críticas.