a china além da china
política e sociedade

Diários de Guo Yuan: Chamam-nos mulheres-sobra. Até quando?

November 13, 2019

Diários de Guo Yuan: Chamam-nos mulheres-sobra. Até quando?

Quando eu tinha 25 anos e trabalhava em Pequim, a minha mãe marcou-me um encontro com um potencial marido. O contacto foi feito através de uma amiga. Nós nunca nos tínhamos visto na vida, eu sabia apenas que ele era da mesma cidade onde eu nasci e cresci, tinha um trabalho estável e dois apartamentos em Pequim. Mas não funcionou, não gostei da experiência e disse à minha mãe que não voltava a alinhar nestes encontros arranjados, tão comuns na China.
O que se passava naquele momento da minha vida é que eu, com 25 anos, tinha entrado oficialmente para o grupo das “mulheres-sobra” (剩女shengnü), nome dado a mulheres com a minha idade ou mais e solteiras. O termo generalizou-se em 2007, quando foi incluído na lista de novas expressões do Ministério da Educação da China.  Na altura, a palavra referia-se a todas as mulheres que, nascidas nos anos 70, não estavam casadas. Estas também eram rotuladas de “mulheres 3S” (single, seventies e stuck). Volvidos mais de dez anos, a popularidade da expressão não diminuiu, muito pelo contrário, estende-se hoje às mulheres que nasceram nos anos 80, que é o meu caso.
A formulação deste termo está relacionada com vários factores. A mulher na China tem hoje um nível de educação bastante superior, outras preocupações com a carreira profissional e novas opções, além de casar muito jovem e depender para o resto da vida do marido. Por outro lado, como resultado da política do filho único, implementada em 1979 na China para dar resposta ao acelerado crescimento da população chinesa, a geração mais jovem nasceu sem irmãos e sem necessidade de partilhar afectos. Com um amadurecimento tardio e maior egocentrismo, falta-lhes então a vontade de assumir a responsabilidade de construir uma família.
“Mulheres-sobra” é um título profundamente injusto, no entanto há muitos que conservam a ideia de que o destino da mulher passa somente pela família e que idealmente deveria casar antes dos 25 anos de idade. A tolerância máxima são, digamos, os 30. A esta pressão ainda tão presente na sociedade chinesa, estão associados inúmeros fenómenos, como é o caso do “encontro às cegas” (相亲 xiangqin)”, que descrevi anteriormente.
Estes dates são geralmente programados pelos pais através de amigos ou conhecidos. No meu caso, tenho uma família que é relativamente aberta e não sinto tanta pressão com o casamento. No entanto, conheço famílias que vivem inquietas com o estado civil dos filhos e a sua descendência e sujeitam-nos a pensar no futuro na companhia de um estranho.
É comum assistir-se a reuniões entre os progenitores, por exemplo, nos jardins das cidades que habitam. Os pais levam uma espécie de curriculum vitae com os dados dos respectivos filhos, como a idade, origem, informações sobre o aspecto físico, trabalho, rendimentos, contactos, etc. Ao local onde se realizam estas reuniões é dado o nome de “canto de encontros às cegas (相亲角 xiangqin jiao)” e a verdade é que o volume de anúncios feitos pelos pais para as filhas é superior do que para os filhos. Os familiares lêem então os perfis, conversam entre si, trocam contactos e passam à etapa seguinte: persuadir os filhos.
Outro fenómeno associado às exigências casamenteiras observa-se em períodos como o Ano Novo Chinês. Durante estas reuniões familiares, são feitos sempre comentários sobre as mulheres presentes, com idades entre os 25 a 30 anos e que ainda não casaram. Tenho uma amiga que aos 28 anos recebeu um “ultimato” da família. Foi avisada de que não poderia voltar a casa durante o Festival da Lua sem um namorado. Para lidar com este tipo de situações, prosperou na internet o “aluguer” de namorados falsos. Perante o pagamento de determinado valor, é possível adquirir durante umas horas ou até vários dias o serviço de um namorado (ou namorada) que corresponda aos requisitos dos pais ou da família. Essa minha amiga não recorreu a esse serviço, mas pediu a um amigo da mesma idade que a acompanhasse a casa e fingisse que era seu namorado.
Depois há também o caso das famílias supersticiosas. Uma colega com quem trabalhava em Pequim contou-me certa vez enquanto almoçávamos uma história que me fez rir durante muito tempo. Apesar de trabalhar na capital chinesa, tal como eu, essa minha colega nasceu noutra cidade. Um dia regressou a casa para visitar os pais e o seu quarto estava transformado num “mundo cor-de-rosa”. As paredes eram rosa, assim como a cama, os armários e restantes móveis. Na altura, ela pensou que talvez aquela divisão tivesse sido preparada para a sobrinha de seis anos, mas qual não foi o espanto quando os pais anunciaram que o tinham remodelado depois de consultar um mestre de feng shui (风水), que dera instruções para ajudar a filha encontrar o homem ideal para se casar em breve. Da mãe recebeu ainda uma pulseira de pérolas falsas, também rosa, e que tinha sido oferta do mestre. Pelo serviço, os pais pagaram dois mil yuan (cerca de 300 euros).
As “mulheres-sobra”, expressão profundamente discriminatória e ofensiva, e todos estes fenómenos que lhe estão associados, reflectem uma opinião que prevalece ainda hoje na sociedade chinesa em relação à mulher que, tal como referi, dispõe actualmente de muitas outras opções além de casar, ter filhos e cuidar da família.
É penoso observar que hoje em dia tantas mulheres chinesas continuam a não ser donas do seu próprio destino. Vêem-se obrigadas a juntar-se a alguém que não amam e que não corresponde às suas expectativas. Só se pode mesmo esperar que as ditas opções “não convencionais” femininas sejam respeitadas e que o tempo seja capaz de apagar esta expressão retrógrada e que contraria a liberdade de escolha, direito inerente a qualquer ser humano.

 

Foto de destaque: Carlos Gonçalves