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Última esperança para os hutongs de Pequim

November 11, 2019

Última esperança para os hutongs de Pequim

As autoridades chinesas estão finalmente a tentar proteger as residências tradiocionais de Pequim, os ‘hutongs’, mas em muitos casos só “pequenas ilhas” estão a ser preservadas, lamenta Che Fei. E o debate continua sobre o que preservar e o perigo da gentrificação, diz o arquitecto chinês.

Hutong em Pequim /Foto: Bene_A (shutterstock)

Após uma carreira feita na Alemanha, o arquitecto e urbanista chinês Che Fei voltou a Pequim em 2007, altura em que muitos ‘hutongs’ (胡同) foram demolidos para mostrar o lado moderno da capital chinesa durante os Jogos Olímpicos do ano seguinte. Uma campanha febril que foi apenas o último golpe contra estas residências tradicionais com pátio interior. Quando o Partido Comunista chegou ao poder na China, há 70 anos, havia cerca de 3.300 ‘hutongs’ em Pequim mas apenas mil sobrevivem hoje, segundo um estudo feito por Rosie Levine para o Beijing Cultural Heritage Protection Centre. Os restantes foram demolidos e substituídos por arranha-céus onde hoje vivem milhões de chineses que foram viver para a capital chinesa na altura da abertura económica do país.
Mas a maré mudou, diz Che Fei, como prova o anúncio feito no ano passado de que Pequim está a preparar a candidatura do centro da cidade – incluindo zonas de ‘hutongs’ como a Gulou, a norte da Cidade Proibida – a Património Mundial da Humanidade para 2035.
“O Governo [chinês] está a tentar preservar o que resta dos ‘hutongs’”, admite o arquitecto, um esforço que não tem sido consensual. “Há um debate a acontecer neste momento, porque estão apenas a ser protegidas algumas pequenas ilhas, não todo o ‘hutong’”, explica Che Fei. E acrescenta que outro problema tem sido decidir “o que preservar, o que proteger”.
Os primeiros ‘hutongs’ datam do século XIII, altura em que a dinastia Yuan, fundada pelos invasores mongóis, desenhou a grelha urbana de Pequim. Desde então, foram sendo alterados pelos seus habitantes, que adicionaram um segundo andar aos edifícios, construíram novas habitações dentro dos pátios ou escavaram as paredes de tijolo cinzento para abrir novas portas e entradas, muitas das quais foram posteriormente transformadas em pequenas lojas.
“O que é um ‘hutong’ original? Os ‘hutongs’ têm 700 anos, qual dos anos é o original?” pergunta Che Fei.

Espaços sobrepostos

Para as autoridades chinesas, a resposta passa pela imagem tradicional do pátio fechado sobre si mesmo, com casas tradicionalmente de um só andar. E por isso mesmo em 2016 lançaram uma campanha para encerrar as lojas nos ‘hutongs’, emparedando as portas ou janelas. Porém, em muitos locais foram usadas finas placas em vez de tijolos.
Já Che Fei prefere sublinhar que a situação destas residências de Pequim não é sustentável a longo prazo, devido ao que chama de “problemas de sobreposição do espaço público e do espaço comunitário da vizinhança”. Um caos que só é aumentado pela informalidade das novas habitações e lojas que foram sendo construído pelos habitantes das casas, sem registo ou aval público.
O arquitecto, que já desenvolveu vários projectos em ‘hutongs’, diz que qualquer alteração descamba em disputas sobre a posse dos terrenos. Durante a reconversão de um pequeno espaço para uma exposição no âmbito da Semana de Design de Pequim, “foi impossível conseguir ligação à rede pública de abastecimento de água, mesmo estando apenas a cinco metros do edifício”, recorda Che Fei.
Por isso mesmo, muitos habitantes destas estruturas acolheram com agrado a campanha governamental, sobretudo no que toca à renovação das casas de banho públicas. Um elemento vital para quem vive nas casas mais antigas, muitos dos quais não têm saneamento básico.

Hutong em Pequim / Foto:Christels (pixabay)

“Camaradificação”

Ao anunciar a campanha de reabilitação dos ‘hutongs’, as autoridades sublinharam que o objectivo não era obrigar os actuais residentes a sair, mas sim “preservar o máximo a velha Pequim”. Ainda assim, o governo local lá admitiu que, quando necessário, os habitantes das casas seriam realojados e receberiam uma compensação. Muitos eram trabalhadores migrantes que viviam em barracas ilegais e não tiveram outra opção senão abandonar Pequim.
Che Fei admite que a campanha “provavelmente irá causar em alguns locais um pouco de gentrificação”. Segundo “Políticas de Património Cultural na China”, de Tami Blumenfield e Helaine Silverman, isso já está a acontecer. “Os ‘hutongs’ com a melhor localização já foram gentrificados e são agora zonas de habitação cara, restaurantes, bares e outros serviços turísticos, tanto para chineses como para estrangeiros”, sublinha o livro publicado em 2014.
Já Che Fei acredita que, tendo em conta que a China tem “diferentes condições sociais do que o Ocidente”, o futuro dos pátios não vai passar pela gentrificação, “que beneficia apenas a classe média, só uma camada da sociedade”. Uma vez que a reabilitação está nas mãos do governo e de empresas estatais, e não de empresas privadas, o urbanista acredita que os benefícios serão distribuídos de forma mais alargada. “Eu chamar-lhe-ia camaradificação, uma palavra nova”.
Também Rosie Levine acredita que encerrar as tradicionais lojas dos ‘hutongs’ foi o objectivo final e não a sua substituição por novos espaços comerciais. “A comercialização tem historicamente sido visto como uma força poluidora pela sociedade chinesa”, disse a norte-americana ao New York Times.

“Urban jumpers”

Segundo a obra “Desenvolvimento Urbano na China Pós-Reforma: Estado, Mercado e Espaço”, a expulsão dos habitantes originais destas residências de Pequim é um exemplo de como os benefícios maiores acabam nas mãos dos construtores. Por um lado, ganham com a valorização das habitações dos ‘hutongs’ e, por outro lado, vendem casas nos subúrbios aos residentes realojados, refere o livro de Wu Fulong, Xu Jiang e Anthony Yeh Gar-Oh.
Para Che Fei, isto faz parte do que ele chama de “urban jumpers”, ou andarilhos urbanos, habitantes das grandes metrópoles chinesas obrigados a mudar de casa de poucos em poucos anos, por exemplo para ir atrás da empresa para qual trabalham ou para conseguir uma educação melhor para os filhos. “Há um sistema de distribuição das crianças ligado ao local onde os pais vivem. Para conseguir que elas frequentam uma escola melhor, só se pode escolher o sítio onde viver”, explica o arquitecto.
Outros “urban jumpers” têm de mudar de habitação simplesmente porque o sítio onde viviam, no centro da cidade, foi demolido para dar lugar a algo novo, obrigando-os a procurar uma casa mais barata nos subúrbios, admite Che Fei. “Isto pode acontecer várias vezes, à medida que uma zona de periferia se torna mais central. O Governo beneficia porque recebe dinheiro da reconversão do terreno, mas isto não é um modelo sustentável”, avisa o urbanista.
Além disso, diz Che Fei, o ciclo de demolição e construção faz com que “as comunidades tradicionais desapareçam ou sejam partidas”, obrigando depois os seus habitantes a “estabelecer novas comunidades, novas vizinhanças” a partir do zero.