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política e sociedade

Os despojos da tragédia

July 29, 2019
(com tradução de Vítor Quintã)

Os despojos da tragédia

Na rede social Weibo, a versão chinesa do Twitter, nenhuma notícia, seja ela sobre novas políticas governamentais ou fofocas de celebridades, consegue manter-se em destaque por mais de um ou dois dias. Mas no início de Julho, o desaparecimento de uma criança captou a atenção dos chineses durante mais de uma semana.
Zhang Zixin vivia perto da cidade de Hangzhou com os avós, que geriam uma venda de fruta. Um jovem casal, que estava a viver num hotel ali perto há cerca de um mês e meio, passava regularmente pela loja de fruta, metendo conversa tanto com os idosos como com a neta de nove anos.
O casal acabou mesmo por arrendar uma casa aos avós de Zixin e em apenas cinco dias convenceram os idosos – mesmo perante a oposição do pai – a deixar a criança viajar com eles, supostamente para ser a menina das alianças num casamento em Xangai. Mas dois dias depois, a 6 de Julho, os avós perderam contacto com o casal.
O pai da menina chamou então a polícia, fazendo com que o caso chegasse à imprensa e às redes sociais chinesas. A princípio, os cibernautas especularam que Zixin tivesse sido levada por uma dupla de experientes traficantes de menores. Mas no dia 8 de Julho, o casal foi encontrado já sem vida num lago perto da cidade de Ningbo, num aparente duplo suicídio. A trama adensou-se e durante os cinco dias as notícias sobre as operações de busca pela criança foram lidas ansiosamente mais de mil milhões de vezes.
Uma história que teve um final triste, quando o corpo de Zixin foi finalmente encontrado no Mar da China Oriental a 13 de Julho.

Deixados para trás

Após a desilusão causada por esta morte, o debate nas redes sociais virou-se para a história da menina. A mãe de Zixin tinha apenas 17 anos quando ela nasceu e abandonou a família tinha a filha apenas três anos, alegadamente por ter sido alvo de violência doméstica. O pai, na casa dos 20, deixou a menina com os avós e foi para a cidade de Tianjin trabalhar.
Muitos cibernautas defenderam que a imaturidade e irresponsabilidade do casal condenou Zixin a crescer sem a presença dos pais. Sublinharam mesmo que a mãe pediu dinheiro emprestado para voltar a Hangzhou e pedir o divórcio, não tendo feito o mesmo quando a filha morreu. Houve até quem citasse o livro O Grande Gatsby: “Sempre que tiver vontade de criticar alguém, lembre-se primeiro que nem todas as pessoas do mundo tiveram as vantagens que você teve”. Tal como acontece à maioria das crianças “deixadas para trás”, o pai de Zixin foi para a cidade em busca de uma vida melhor para a filha.
Até o Diário do Povo se juntou ao debate, defendendo que a família de Zixin foi vítima nesta tragédia. É preciso parar de culpar as vítimas, disse o jornal estatal chinês na sua conta no Weibo, e não esquecer quem cometeu o verdadeiro pecado.
A investigação da polícia concluiu que o casal que raptou a menina tinha sofrido uma série de contratempos e que há muito tempo tinha perdido o contacto com os familiares. O dinheiro começava a ser escasso e planearam então o suicídio, usando roupas para se atarem um ao outro antes de mergulharem no lago. “Vivemos rodeados de enormes diferenças, de rendimento, de condições, de qualidade de vida, do impacto causado pela reforma e crescimento económicos, de recursos educacionais, de classe, geográficas entre a cidade e campo, de género. (…) São pessoas que foram elas próprias deixadas para trás pela sociedade, mas nem por isso são menos pessoas”, escreveu um cibernauta.

Crime e castigo

Foi enorme o espanto das redes sociais com a ingenuidade dos avós da menina, que viveram toda a vida no campo. Se há várias décadas era normal na China os estudantes irem sozinhos para a escola, logo desde a primária, hoje em dia – devido às muitas notícias sobre raptos – nenhuma família deixaria uma criança sozinha, nem por meio minuto. Muitos cibernautas defenderam, por isso, que também os avós de Zixin são culpados, por negligência.
Pouco antes de Zixin desaparecer, um outro caso ocupou as manchetes dos jornais. O fundador do grupo de promoção imobiliária Future Land Development, Wang Zhenhua, foi preso por alegado abuso de menores, juntamente com uma mulher. Ela terá prometido a uma amiga acompanhar as duas filhas dela, de nove anos e 12 anos, à Disneylândia de Xangai, mas em vez disso levou-as para o hotel do empresário.
Após o caso ter vindo a público, o valor das acções da empresa caiu a pique na bolsa de Hong Kong, o magnata foi descrito como um tarado e a mulher acusada de o ajudar a recrutar vítimas. Mas ninguém criticou a mãe das duas meninas por confiar as filhas a uma outra pessoa.
Actualmente a legislação chinesa não prevê qualquer punição para actos de negligência por parte dos pais ou guardiões de crianças. Isto porque os chineses ainda encaram as crianças como propriedade da família. Se uma pessoa vir alguém a bater no filho e chamar a polícia, vai ser acusado de ser bisbilhoteiro. Se o vizinho deixar a filha sozinha num apartamento no quinto andar e ela estiver na iminência de cair da varanda, uma pessoa apenas poderá tentar avisá-lo do perigo que a criança correu.
Os médicos e os advogados têm de ter uma licença para exercer a profissão e todos temos de ter uma carta para conduzir. A profissão de pai ou mãe parece ser a única que não exige qualificações. Mas onde estão os direitos de uma criança cujos pais não têm competência para desempenhar essa função? Se esses pais causaram danos à criança, não devem ser punidos por isso?
O corpo de Zixin deu à costa, mas nem por isso o debate cessou, continuando a discutir-se quais são as responsabilidades dos pais, as dificuldades das famílias de trabalhadores migrantes e até mesmo sobre a saúde mental de grupos marginalizados. Cada um deles um tema complexo que normalmente fica esquecido no turbilhão do ciclo noticioso.
A morte da menina, como uma peça de teatro improvisado, juntou todos estes elementos, lembrando aos chineses cuja vida é pacífica e próspera que há muita coisa que se esconde na escuridão. A verdadeira paz e prosperidade só surge quando esses problemas são trazidos à luz.

Foto de destaque: Catarina Domingues (Arquivo)

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