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política e sociedade

Diários de Guo Yuan: A China aos olhos de um português e um português aos olhos dos chineses

July 18, 2019

Diários de Guo Yuan: A China aos olhos de um português e um português aos olhos dos chineses

1. No ano passado, ao planear as férias para 2019 com o meu namorado, decidimos que era altura de irmos à China. Em Abril, depois de 14 horas de viagem de avião e mais três de autocarro, chegámos finalmente a casa dos meus pais, em Nantong, que fica mais ou menos a cem quilómetros de Xangai. Para o Jorge, meu namorado, que foi conhecer a China pela primeira vez – ele é português – tudo era novo, diferente. Para mim, que não regressava a casa há um ano e meio, vi grandes mudanças. E vi também coisas que precisam de mudar.

2. Se alguém perguntasse ao meu namorado o que mais o incomodou ao longo destes dias, provavelmente ele diria que foi a forma como as pessoas olhavam para nós. Avisei-o antecipadamente que o fariam por curiosidade e sem má intenção. Os olhares intensificaram-se sobretudo nas zonas rurais, pequenas povoações chinesas, como Zhouzhuang e Tongli (subúrbios de Suzhou), mas aconteceu menos em Xangai. Às vezes sentíamos uma jovem a observar-nos, depois a comentar com o companheiro, que por sua vez se aproximava de nós para nos examinar. “Sinto-me desconfortável quando me olham assim, como se fosse um animal no jardim zoológico”, dizia ele irritado. A verdade é que passado algum tempo, o Jorge começou a comentar ironicamente que se cobrássemos cinco euros por cada vez que nos espiassem, ficaríamos ricos na China.
Esta curiosidade pelos estrangeiros parte sobretudo de uma parte da população que tem pouco contacto com o mundo lá fora. Mas fica-se geralmente pelo olhar e raramente resulta em comunicação verbal. Esta dificuldade no contacto não se deve apenas à barreira da língua, mas também a um certo medo e vergonha que os chineses sentem em relação aos estrangeiros. Aliás, a própria palavra “estrangeiro” (老外, lǎo wài, que traduzido à letra quer dizer “velhos forasteiros”) para generalizar as pessoas que não são da nacionalidade chinesa já é um manifesto de exclusão e de medo do desconhecido.

3. Antes de chegar à China, os meus pais avisaram-me que alguns amigos tinham interesse em conhecer o meu namorado “estrangeiro” e que estávamos convidados para jantar num bom restaurante para que o Jorge pudesse conhecer os melhores pratos da região. Claro que o fizeram de boa vontade, sem dúvida, mas depois de dois jantares com amigos – famílias de classe média local – o Jorge confessou estar aborrecido porque ninguém conseguia comunicar com ele. As pessoas que pertencem à mesma faixa etária dos meus pais, ou seja, que têm entre 45 e 55 anos, na China, praticamente não falam inglês. Mas a verdade é que eles também tinham vergonha de contactar directamente com um estrangeiro. Em vez de me pedirem para traduzir para ele o que queriam saber, perguntavam directamente a mim.
Com os mais jovens sentimos alguma diferença. Num jantar com a minha melhor amiga, que conheço desde a infância, ela fez um esforço para comunicar em inglês, sendo que a mesma dificuldade no inglês fez com que eu acabasse por traduzir a conversa. E o mesmo aconteceu com uma prima, que não querendo sobrecarregar-me, recorreu a uma aplicação de interpretação no telemóvel. Tanto a minha amiga como a minha prima estudaram inglês na escola secundária e completaram um curso universitário. No entanto, estamos a falar do ensino de uma língua estrangeira baseado em livros didácticos, que não têm qualquer aplicação ao dia-a-dia.
Com a abertura e reforma, importante política na China implementada por Deng Xiaoping nos anos 1980, a aprendizagem do inglês cresceu vertiginosamente, especialmente entre jovens. Contudo, sinto que de facto é necessária uma verdadeira abertura da China – na língua e nas mentalidades.

4. No sector dos serviços, uma pessoa será sempre atendida de forma mais rápida e eficiente na China do que em qualquer país europeu. No entanto, o excesso de pessoas que acorre a estes serviços também pode fazer com que estas experiências sejam um desastre.
Na China, é possível pagar tudo com o telemóvel através das chamadas carteiras virtuais – o Wechat e o Alipay são exemplos de aplicações semelhantes ao MBWay aqui em Portugal – que servem de multibanco móvel e estão associadas à conta bancária.
E quando eu digo que tudo se paga, é mesmo tudo, desde um quarto num hotel de luxo até uma garrafa de água numa loja de conveniência. Se facilita o dia-a-dia da população chinesa, a verdade é que para os estrangeiros, enquanto turistas no país, isso impõe-se como um problema. Na altura de pagar, o funcionário apresenta de imediato o código de barras para que o telemóvel efectue a leitura e a transferência do dinheiro. Nunca são mencionadas outras modalidades de pagamento.
E mais: em vários estabelecimentos de comida na China, os pedidos são feitos através do telemóvel, nomeadamente no McDonalds. Não faz qualquer sentido, principalmente quando estamos em restaurantes mais sofisticados, precisamos de informações complementares e o atendimento pessoal é importante.
A informatização de tudo, que tem em vista a eficiência, chega ao ridículo do seguinte episódio. Em Suzhou, cidade turística, as entradas nos dois principais jardins (a cidade é conhecida pelos canais e jardins) e no museu da cidade só podem ser compradas online e pelo menos um dia antes. Para fazê-lo é necessário o número do documento de identidade e o horário da visita (a cada hora), sendo que o número de entradas é limitado! No caso de falhar a hora escolhida, seja por problemas no trânsito ou falhas no telemóvel, é possível pedir a devolução da entrada. No entanto, só é possível fazer nova aquisição para o dia seguinte ou depois disso. Como não conhecíamos as regras e só tínhamos um dia em Suzhou, acabámos por não conseguir visitar os jardins.
Incomodou-nos a falta de flexibilidade, de consideração para com o turista, para com a população idosa ou portadores de deficiências que desconhecem a medida ou têm dificuldade em usar o sistema informático. A par da tal eficiência de que falei, vivemos com a pressão da tecnologia, que ao invés de nos servir, manipula e controla o nosso dia-a-dia.
Esta viagem de duas semanas foi naturalmente curta para que o Jorge pudesse conhecer bem a China. Apesar da poluição e de alguns problemas que aqui referi, ele ficou impressionado com o espírito do povo chinês, e com esta capacidade de construção e de desenvolvimento do país. Hoje plantam-se muito mais árvores, hoje o ambiente é uma questão prioritária para a política e população chinesa. Vamos ver como estará o país em 2020. Voltaremos para o ano.

 

Foto de destaque: Catarina Domingues (Arquivo)
Canais de Suzhou

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