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À conversa com uma professora de Ham-cheu

July 3, 2019
(em colaboração com Mathilde Denison Cheong)

À conversa com uma professora de Ham-cheu

Ham-cheu é um dos nomes antigos da cidade chinesa de Hangzhou, registado pelos portugueses e que remonta pelo menos ao século XVII. Foi Shao Wanbi (Sô E Bî em xangainense ou Siu Ün Pek em cantonense), professora de português da Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang, que me ensinou a pronunciar o nome da cidade no subdialecto de Tonglu (ou Tong Lou em cantonense): Ang Djou. Tem um “h” quase inexistente, que relembra a forma como os lusófonos pronunciam o seu nome oficial “Hangzhou”. Wanbi, movida também por um forte interesse em línguas, sublinhou que no subdialecto da sua aldeia, o nome desta cidade se diz Dong Lu.
Enquanto me vejo bloqueado na escrita da minha própria tese de doutoramento, encontro no estilo dos escritores da escola decadente japonesa um pequeno estímulo para seguir em frente. Como acontece com a maior parte dos artigos que aqui escrevo, satisfaz-me compartilhar os meus pensamentos como é habitual de forma pouco estruturada.
Acabei de escrever esta frase e já quero fazer um parêntesis para sublinhar uma questão que me veio de repente à cabeça: o dialecto falado na província de Chekiam (antiquíssimo nome português de Zhejiang) ou Tchit-Kóng (o mesmo nome em cantonense, nas palavras do sinólogo macaense Luiz Gonzaga Gomes, ou Che-Quiang, num livro de Eudore de Colomban) é um dialecto chinês, cuja fala mais se assemelha à pronúncia dos caracteres chineses utilizados no japonês moderno. Japonês que, coincidentemente, Wanbi, a Mathilde e eu também estamos a aprender.
Em linha com referências pelas quais nutro grande afeição, adoptadas por Joaquim Magalhães de Castro, Haoyan Song (Song Hou Ngam em cantonense) ou a Revista Cultural de Macau, retiro bastante prazer em escrever “Ham-cheu” (preferindo colocar Hangzhou entre parêntesis).
Parece-me uma pena não mencionar pelo menos uma vez, num artigo em português, estes nomes que os portugueses conhecem há séculos. Neste artigo escolhi, porém, referir-me à cidade pelo seu nome no subdialecto de Wanbi: Ang Djou. Esta escolha não é apenas resultado da minha necessidade obsessiva de procurar a origem das coisas, reflectindo igualmente a minha crítica ao sistema chinês de romanização “pinyin”, sistema esse que não me parece suficientemente representativo da diversidade da língua chinesa.
De Berlim até Ang Djou. É por intermédio de Chen Kuang (Chan Kuong em cantonense), uma antiga colega de turma do Departamento de Português da Universidade de Macau, que não vejo desde há 12 anos, que conheço Wanbi. Embora não seja um comum utilizador da rede social chinesa wechat é nessa plataforma que nos conhecemos.
Antiga aluna de estudos interculturais de português/chinês na Universidade do Minho, Wanbi tem travado amizade com alguns dos meus amigos chineses de longa data. Ela, a quem também chamo de sensei [palavra japonesa, cuja equivalência cantonense ainda existe (sin sang) e que significa “professora”], fez a licenciatura em estudos luso-ingleses na Universidade de Estudos Estrangeiros de Tianjin.
Durante o nosso encontro virtual via wechat, Wanbi foi bastante calorosa, falando comigo sempre abertamente, seja enquanto professora ou amiga. O primeiro tema sobre o qual falámos foi o ensino de português em Ang Djou. Constatei com incredulidade que o fenómeno dos “explicadores-estrelas” de Hong Kong (ou mundialmente conhecidos como star tutors na imprensa anglófona) foi reapropriado em Ang Djou pelos centros de línguas, onde o português é também caracterizado como “garantia de um alto salário”. Ao olhar para o rosto asiático de Wanbi, de uma beleza clássica, digo-lhe que um dia ela poderá vir a ser uma dessas professoras. Wanbi responde-me com um humor particularmente chinês: “Mantenho-me discreta”.
Antes de ter tido oportunidade de trabalhar como docente, por ocasião da abertura do Departamento de Português da Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang, em 2013, Wanbi já tinha trabalhado numa galeria de arte privada em Pequim. Por isso, sublinha que “esse alto salário” é relativo. Sobretudo com a crescente abertura, observada principalmente na última década, de cursos de língua portuguesa na República Popular da China (uma “erupção vulcânica”, nas palavras de Li Changsen citadas num artigo do académico Carlos Ascenso André), essa garantia vai perdendo a validez. Por outro lado, o sector da língua portuguesa é cada vez mais competitivo.
Uma outra observação: o português é conhecido na China como sendo uma “xiǎo yǔ zhǒng”, que em mandarim significa “pequena língua”. Não quer isto dizer que é uma das línguas oficiais faladas apenas por um grupo minoritário na China, ou que estamos a julgá-la pelo número de falantes. “Tanto o francês, como o espanhol são aqui conhecidas como ‘pequenas línguas’”, diz Wanbi, esclarecendo que todas as línguas estrangeiras, salvo o inglês, são denominadas de “pequenas línguas” entre os estudantes chineses.
Outra coisa que me une também a Wanbi é a tradução de culturas. Como professora, ela lecciona sobretudo cursos de nível básico, onde se debatem as diferenças culturais entre Portugal e a China.  Reconhece, porém, que uma comparação cultural entre estes dois países é um enorme desafio: surgem questões como saber qual é equivalência do fado na China, ou como comparar a grande variedade de dialectos chineses com as variantes do português. Parece-nos interessante reservar estas suas questões para futuras pesquisas.
Discípula ao longo de nove meses de um mestre de caligrafia chinesa de notória reputação, Wanbi apresentou-me ainda cópias que fez dos manuais do “Sutra do Diamante”, cópias essas cuja estética caligráfica achei admirável. Ela é, além disso, apreciadora de chá chinês, ensinando aos seus alunos, por exemplo, a diferença entre o chá preto português e aquele que é considerado o chá de cor preta em chinês. “Para mim, parece-me essencial que os meus alunos estejam familiarizados com a sua própria cultura”, afirmou com entusiasmo, referindo ainda que, no próximo semestre, inicia um curso introdutório de cultura chinesa para os alunos do terceiro ano. “Em contrapartida, talvez haja menos estudantes a frequentar este curso, atendendo a que a maioria estará em Portugal para o ano de intercâmbio no estrangeiro,” observou.
Wanbi, que cresceu numa aldeia em Dong Lu, é fluente no seu subdialecto, embora entenda ainda o dialecto de Ang Djou, que em muito se assemelha à gíria da sua terra natal. Além disso, graças aos avós, originários de Wenzhou (Ouen-chouou em documentos antigos em francês, Iü Djio no falar local, Wan Chao em cantonense), também entende o dialecto dessa região. E, claro está, Wanbi domina o mandarim, que aprendeu o desde o jardim-de-infância.
Na realidade, a sua formação linguística é em muito semelhante à minha. E Wanbi pensa como nós, os cantonenses: “Diz-se muitas vezes que as gentes da nossa terra têm mais facilidade em aprender línguas, devido à complexidade linguística do seu quotidiano”, vincou durante a conversa. Quando lhe pedi que falasse mais sobre a experiência com os conterrâneos dos seus avós, em Portugal, que, aliás, ficaram conhecidos por terem criado uma série de negócios no país, Wanbi sorriu, respondendo-me: “Sentia uma afeição inexplicável por eles quando falávamos”.
Ao contrário de Pequim ou de Xangai, Ang Djou carece, tal como refere Wanbi, de uma instituição responsável pelas missões diplomáticas dos países de língua portuguesa, e é também por essa razão que o volume de eventos culturais em língua portuguesa é reduzido. Após uma rápida pesquisa, parece-me que a Alliance Française é a única instituição que tem uma presença europeia oficial em Ang Djou.
Marco Polo e Fernão Mendes Pinto terão passado por esta cidade, cuja importância cultural e económica é visível ainda hoje em dia. Ang Djou e o incontornável Lago do Oeste integraram também o nosso currículo escolar em Macau, fazendo parte nossa “China imaginária”. Esta é uma cidade que a Mathilde e eu conheceremos melhor daqui a alguns meses. Enquanto isso não acontece, ter sido recebido virtualmente por Wanbi e termos falado sobre a língua portuguesa já me fez sentir mais próximo.

Traduzido do francês por Rita Guimarães
Fotografia: cortesia de Shao Wanbi

 

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