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política e sociedade

Kafka nas escolas

June 26, 2019

Kafka nas escolas

Até à década de 1980 a livre mobilidade geográfica, dada como adquirida no Ocidente, era na China uma rara excepção. Devido ao sistema de residência hukou, alguém que quisesse, por exemplo, emigrar do campo para a cidade tinha dificuldades em viajar no interior da China e, se não obtivesse a autorização da unidade de trabalho para a qual tinha sido destacada pelo Partido Comunista, nem sequer conseguiria alojamento.
A situação só se alterou com as reformas implementadas por Deng Xiaoping na década de 80 do século passado para salvar a economia chinesa do duplo desastre do Grande Salto em Frente e da Revolução Cultural. Muitas das restrições foram levantadas, permitindo assim que milhões de pessoas migrassem para alimentar as fábricas que nasciam como cogumelos nas novas zonas económicas do sul do país.
Ainda assim manteve-se inalterada a base do sistema hukou, cujas contradições voltaram à ribalta no mês passado. Voltou então a circular nas redes sociais chinesas um artigo sobre um casal que, por não ter o hukou de Pequim, enfrentou um processo bizantino para registar o filho numa escola, pública ou privada, na capital chinesa.
O que Xiaomei e Li Qiang (nomes fictícios) não sabiam é que de acordo com as regras, marido e mulher devem trabalhar na mesma área de Pequim, o que não era o caso. Li Qiang, dono de uma pequena empresa no distrito de Chaoyang, acabou por alterar a tipologia da companhia e registar-se como funcionário. Desta forma, deixava de ser empresário e de estar sujeito a essa regra.
Nesta situação é ainda necessário convencer os senhorios – alguns dos quais exigem dinheiro para colaborar no processo –  a ir pessoalmente pedir e apresentar os documentos do arrendamento. No caso deste casal, o senhorio, que vivia no Japão, inicialmente concordou em ajudar mas quando chegou a hora mudou de ideias. Tiveram de pedir ajuda a uma conterrânea para assinar um contrato falso de arrendamento e alterar os dados na autorização de residência.
Foi pior a emenda que o soneto. Segundo a nova autorização de residência, Xiaomei e Li Qiang violavam uma outra regra, pois o documento afirmava que estavam em Pequim há menos de seis meses. Isto apesar do casal viver na capital chinesa há mais de uma década. Nada a fazer, a única alternativa seria recambiar a criança para frequentar uma escola na terra natal da família – onde já não têm família – e tentar novamente no ano seguinte.
Mesmo que consigam ultrapassar este processo kafkiano, as famílias sabem que quando os filhos terminarem a escolaridade obrigatória, no nono ano, terão impreterivelmente – tirando raríssimas excepções – de regressar à terra natal se quiserem continuar os estudos. Ou seja, há crianças nascidas e criadas em Pequim que por volta dos 13 anos são obrigadas a mudar-se para um lugar estranho onde muitas vezes já não têm familiares.
E voltar para a capital chinesa não é fácil. Apesar do gaokao, exame único de acesso ao ensino superior, atribuir uma nota única a todos os finalistas dos liceus da China, as universidades públicas têm direito a atribuir quotas para diferentes regiões do país. Na prática, um estudante que pretenda ingressar numa universidade situada numa grande cidade como Pequim e Xangai tem de obter uma nota muito superior se vier de outras províncias do que se já viver na cidade.

Dividir para reinar

Alguns chineses mostraram-se chocados ao ler nas redes sociais a história desta família, confessando que por, não estarem casados nem terem filhos, nunca tinham pensado neste problema. Mas um outro grupo de cibernautas culpou Xiaomei e Li Qiang pela situação, sublinhando que poderiam comprado uma casa em Pequim para obter o hukou local, mesmo que isso implicasse tornarem-se 房奴 (fánɡ nú), ou seja “escravos da hipoteca”. Lembraram ainda que um dos pais poderia ter procurado um trabalho que lhes permitisse obter o hukou, ainda que isso exigisse abdicar de um emprego do qual gostasse.
As políticas do Partido Comunista criaram este tipo de mentalidade, em que não se questiona um sistema político e económico que promove a desigualdade e restringe a liberdade individual. Pelo contrário, defendem regras que permitem ao regime chinês dividir para reinar, criando uma luta permanente entre quem teve a sorte ou o acaso de nascer numa família registada numa cidade e todos os outros.
Xiaomei e Li Qiang acabaram por aceitar a realidade e emigraram para o Canadá. Ao tomar a decisão, Li Qiang recordou o frio inverno de 2017, quando ele e dois amigos se juntaram aos voluntários que ajudavam os trabalhadores migrantes expulsos durante uma campanha de demolição de “estruturas ilegais” em Pequim. Nunca pensou que pouco tempo depois seria ele a fazer as malas.
Este tipo de restrições não se limita a Pequim e encontra-se em todas as grandes cidades chinesas, que continuam a crescer à custa das contribuições de um exército de migrantes que trabalha de forma precária ou informal, por exemplo na construção civil, e que não tem nem autorização de residência nem paga segurança social. Se o processo para registar os filhos em escolas locais já é kafkiano para famílias dae classe média como Xiaomei e Li Qiang, os obstáculos são inultrapassáveis para os trabalhadores migrantes. A estes não lhes resta mesmo outra opção senão deixar os filhos ao cuidado de parentes na terra natal. Em 2017 havia cerca de 69 milhões de “crianças deixadas para trás” no campo. A ausência dos pais faz com que estas crianças sofram problemas emocionais e de desenvolvimento afectivo. Além disso, estão desde sempre em desvantagem, por frequentarem escolas com muito menos recursos do que nos meios urbanos.
A história de Xiaomei e Li Qiang não é nova, foi conhecida em 2018 e voltou recentemente a circular nas redes sociais, assim que arrancou a época para registar os filhos para o próximo ano lectivo. Mas desta vez a censura do Partido Comunista foi mais lesta e no dia seguinte qualquer menção ao artigo tinha desaparecido.
Durante 60 anos, o manual da disciplina de Chinês para o ensino secundário incluiu um artigo sobre Chen Sheng, descrito no “Registos do Historiador”, uma crónica histórica escrita há 2100 anos, como o líder da primeira rebelião popular contra a tirania do imperador da dinastia Qin. A lendária frase de Chen Sheng, “Há alguém que nasça para ser rei, duque, general ou ministro?”, foi usada como um exemplo do espírito do Partido Comunista na luta contra o feudalismo chinês e a corrupção do Kuomintang.
Este ano foi publicada a nova versão deste manual, da qual desapareceu este artigo, garantindo assim que a história e o espírito de Chen Sheng não deixem marca na nova geração de chineses.

Tradução: Vítor Quintã
Fotografia de destaque: Catarina Domingues

 

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