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Festival do Barco-Dragão: do poeta patriota Qu Yuan às cinco criaturas venenosas

June 7, 2019

Festival do Barco-Dragão: do poeta patriota Qu Yuan às cinco criaturas venenosas

Numa das minhas aulas sobre as indústrias culturais de Macau, pedi aos meus alunos que escolhessem o elemento cultural mais representativo da cidade. Fiquei surpreendida por alguns deles terem nomeado a corrida dos barcos-dragão. Apesar de não ser exclusivo de Macau, o festival tem sido considerado por muitos um dos acontecimentos mais importantes do calendário da nossa pequena cidade.
A regata dos barcos-dragão foi um dos primeiros eventos criados por associações locais, de acordo com dados do Instituto do Desporto de Macau. Mas foi só a partir de 1979 que tomou forma de competição internacional. E embora seja hoje um acontecimento comum nesta região do delta do Rio das Pérolas, a verdade é que para Macau, a corrida é vista como um dos eventos com maior impacto internacional, superado apenas pelo Grande Prémio.
As regatas realizam-se todos anos por volta do Tuen Ng (端午節), nome chinês (cantonês) do Festival do Barco-Dragão. Juntamente com o Festival da Primavera e o Festival do Meio do Outono, o Tuen Ng é uma das três celebrações mais relevantes na cultura chinesa.
As regatas fizeram do Tuen Ng um dia de festa, mas a origem deste festival conta histórias de guerra e morte. Na realidade, este deveria ser um dia de luto, considerando a versão mais abrangente da festividade.
Qualquer cidadão chinês, penso eu, conhecerá a história de Qu Yuan (屈原), ministro do reino do Chu, que viveu durante o Período dos Estados Combatentes, na antiga China, entre 340 e 278 a.C.
Conceituado poeta patriótico e autor de alguns dos maiores trabalhos de poesia chinesa, Qu Yuan escrevia sobretudo sobre o amor que sentia pelo país. Durante o tempo que passou na corte, serviu o rei Huai do Chu, embora a sua carreira política tenha sido curta – há quem diga que a inveja de oficiais corruptos o desacreditou perante o rei; outros acreditam que foi a sua coragem que o levou a opor-se às más decisões tomadas pela liderança e a ser desterrado. Mas apesar deste exílio forçado, continuou a ser amado pelo povo do reino do Chu.
Anos passados sobre o desterro, Qu tomou conhecimento da queda do reino que tanto amava e, num último acto de patriotismo, acabou por se suicidar, atirando-se ao rio. Aconteceu no 5.º dia do 5.º mês do calendário chinês, dia que é agora conhecido como Festival Tuen Ng.
Conta a lenda que o povo, movido pelo patriotismo de Qu Yuan, acorreu de barco ao local para o tentar salvar, mas não foi possível encontrar o corpo de Qu Yuan. Colocaram então decorações em forma de dragão nos barcos para afugentar peixes e camarões e lançaram ao rio arroz glutinoso embrulhado em folhas de bambu (hoje conhecido como zongzi 粽子, dumpling de arroz glutinoso) para que Qu Yuan não fosse devorado pelos bichos do rio.
Para assinalar a data da morte de Qu Yuan, todos os anos os barcos voltam a abandonar o porto em direcção ao rio, cozinha-se zongzi.
Esta é a versão mais conhecida sobre a origem do Festival dos Barcos-Dragão, embora existam registos de que muito antes de Qu Yuan nascer, entre 770 e 476 a.C, durante o Período das Primaveras e Outonos, já os barcos-dragão eram utilizados por reis em guerras e na formação de fuzileiros navais. Um grupo de historiadores defende até que a tradição das regatas e dos zongzi remontam há mais de oito mil anos, sendo esta uma prática da antiga tribo Yue, que vivia a sul das zonas baixas do rio Yangtzé.
Outra interpretação menos conhecida atribui a esta festividade o nome de Festival dos Cinco Venenos (五毒節). Durante o Período dos Estados Combatentes, antes da fundação da dinastia Qin, havia quem acreditasse que o Tuen Ng marcava a transição entre a Primavera e o Verão, e que os animais mais venenosos – serpente, escorpião, centopeia, sapo e a aranha – iriam emergir e semear veneno.
O quinto mês do ano era considerado o ‘mês venenoso’, sendo o 5.º dia (Tuen Ng) o pior deles. E por isso, em vez de se comerem bolinhos de arroz glutinoso, como é hoje tradição, bebia-se vinho de realgar (雄黃酒), que se acreditava ser capaz de espantar os cinco venenos das cinco criaturas. Na realidade, a tradição do barco-dragão é também uma forma de repelir o mal. Dizia o ditado que quanto mais rápido andassem os barcos-dragão, mais rápido se afastava o mal nesse dia. Remavam-se os barcos a alta velocidade, até a crença se transformar numa competição.
Quer a origem das corridas de barco-dragão esteja associada a uma guerra ou treino militar, a uma tentativa de afastar os maus espíritos, ou à celebração de um poeta patriota, a verdade é que faz hoje parte da identidade cultural de Macau. O acto da corrida representa esforço, trabalho de equipa e é frequentemente utilizado como metáfora para o nosso dia-a-dia.
Enquanto andei a fazer investigação sobre as pequenas médias empresas locais, apercebi-me que muitas vezes os empresários referiam-se ao sucesso dos seus negócios como se estivessem a remar um barco-dragão, em que é necessário o esforço conjunto na mesma direcção para alcançar um objectivo. Já para não falar dos muitos anúncios publicitários feitos aos zongzhi, que transformaram estes bolinhos de arroz glutinoso num bem cultural de Macau.

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