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As Ruínas de São Paulo enquanto atracção turística

May 13, 2019

As Ruínas de São Paulo enquanto atracção turística

Ruínas de São Paulo/ FOTO: Carlos Gonçalves

1. Num dia quente e húmido, numa típica tarde de fim-de-semana de Verão em Macau, fui com um conhecido até às Ruínas de São Paulo, com o fim de reunir alguma documentação fotográfica para o presente ensaio, por sua vez realizado no âmbito do workshop “Fotografia e Antropologia”, leccionado pelo antropólogo finlandês e especialista do Médio Oriente, Samuli Schielke, no contexto do meu mestrado em Antropologia Visual, em Berlim. Como residentes naturais de Macau, onde crescemos, encontrámos um quadro marcante, já familiar, em qualquer lugar da cidade por onde as massas de turistas passam: o incrivelmente lotado Largo da Companhia de Jesus, uma pequena praça que alberga uma escadaria, e, mais importante, as ruínas da fachada da igreja, razão pela qual milhares de visitantes aqui vêm todos os dias.
Quando chegámos, uma banda a tocar o “Thriller” de Michael Jackson era o centro das atenções, fazendo a praça parecer ainda mais cheia. Se o turismo é, como Erve Chambers (2009, xii) afirma, “constituído por qualquer tipo de actividade itinerante, que inclua a experiência autoconsciente de um outro lugar”, então eu próprio era um turista na chegada a esta 旅遊勝地 (loi iao seng tei, “atracção turística” que é, jogando com os caracteres em cantonense, homónima de “atracção turística sagrada”, 旅遊聖地), e pela qual muitos de nós evitariam passar, apesar de se localizar no coração da cidade. Com os ventos a entoarem famosos clássicos da pop de Hong Kong, como “Si Chi San H’a” (Debaixo do Lion Rock) e centenas de turistas a falarem em mandarim (embora não necessariamente a sua língua materna), a fotografar e a filmar, a tentativa de captar os melhores ângulos ou frames das pessoas e do sítio provocaram em mim uma certa perplexidade.
Para Nelson Graburn (1989), viajar é um estado sacralizado e extraordinário da nossa vida. Este must-see “sagrado” a que chamamos de Tai-sam-pa em cantonense ou Da-san-ba em mandarim – significa Grande [Templo de] São Paulo (grande comparando com o relativamente pequeno Seminário de S José) – e a Rua de São Paulo são o centro desta veneração secular do viajar ou excursionismo. De volta à história, as ruínas do passado glorioso (Cathryn Clayton 2010) e a catedral católica, que é considerada parte da “primeira universidade ocidental no Extremo Oriente”, construída do século XVI ao século XVII, e que por diversas vezes ardeu, foi em tempos conhecida pelo seu carácter religioso e descrita como “um templo de adoração a céu aberto” no filme mudo “Bits of China”, produzido na década de 1930.

2. A fachada foi elevada a símbolo da cidade pela administração portuguesa “à última da hora”, antes dos poderes políticos serem transferidos para a China em 1999 (Clayton 2010). Mas antes de Macau virar a sua orientação para o turismo, seguindo as directrizes coloniais de Portugal na década de 1960, a “Grande São Paulo” já era uma visível representação da Igreja Católica e da ocidentalidade da cidade: aparecia nas notas bancárias coloniais, quadros, capas de livros e postais.
Hoje as ruínas são um “ponto de encontro” das massas chinesas continentais. O seu estatuto enquanto Património da Humanidade, bem como a sua proximidade com os enormes casinos desta pequena cidade, parecem ser a razão pela qual estas aqui vêm posar, e ser fotografadas. Por outro lado, protestos ou manifestações por parte dos residentes locais raramente voltaram a este lugar, estando a praça, ao invés, diariamente repleta de turistas (a menos que caminho seja aberto para qualquer actividade de outro género, o que acontece frequentemente).
Edward Bruner (2004: 22) diz que é necessária “uma narrativa apropriada para um local”, de modo a vendê-lo como destino. O relato que o enquadra como parte do “resultado de um encontro entre a China e Portugal”, em vez da “herança de uma antiga colónia”, adoptado pelos governos português e da República Popular da China, parece bem servir esta proposta aos turistas tanto chineses como portugueses. No entanto, o Museu de Arte Sacra e Cripta, inaugurado em 1996, que exibe uma sepultura, relíquias de mártires japoneses e obras de arte católicas, vem fortalecer a predominante ocidentalidade e religiosidade deste sítio, embora a sua posição junto a um templo taoista, construído no final do século XIX, bem como as contribuições dos jesuítas para o intercâmbio intelectual sino-ocidental sejam sempre enfatizadas.
Ocidentais que sigam as rotas antigas dos “Descobrimentos” portugueses; japoneses no rasto do passado dos seus compatriotas católicos forçados a abandonar o seu país; turistas chineses e naturais de Hong Kong no encontro de uma experiência doméstica mas estrangeira e comercializada; e excursões locais de grupos de origem chinesa à espera de identificarem a história de uma orgulhosa troca cultural sino-ocidental ou -portuguesa com meio milénio, podem diferir no objectivo, mas todos eles se deslocam no espaço e no tempo, em busca de um passado autêntico.

3. Na estreita e movimentada Rua de São Paulo encontrámos padarias cantonenses, lojas de recordações, pastelarias a oferecerem os famosos pãezinhos de costeleta de porco ou refrescos taiwanenses, farmácias onde chineses do continente depositam mais confiança na medicação e no leite em pó do que em casa; algumas marcas transnacionais e ainda algumas lojas de mobília tradicional chinesa, cuja presença foi outrora dominante e direccionada para os ocidentais, antes da política de atribuição de vistos a turistas chineses ser relaxada nos anos pós-transição.
No derradeiro período da administração portuguesa e enquanto eu ainda andava na escola, a Rua de São Paulo era uma passagem tranquila, onde se podia facilmente encontrar um grupo de escuteiros portugueses em procissão a cantar e pouquíssimas padarias cantonenses. Hoje, a estrada está cheia de turistas chineses e de Hong Kong que procuram biscoitos regionais, que se promovem como “cheng-chong” (ou “zheng-zong”, autênticos) e “tipicamente locais”. Apesar de muita da doçaria vendida não integrar o nosso dia-a-dia, os pastéis de nata portugueses (pou tat em cantonense), os pastéis de amêndoa do Sul da China, o pork jerky e outros elementos da pastelaria cantonense são muito populares entre turistas e começam mesmo a ser representativos para os locais, enquanto os snacks macaenses (portugueses mestiços e colonos nativos) como é o alua só serão possíveis encontrar longe dos lugares mais batidos.
Clayton (2010, 310) notou que “a era da administração portuguesa é uma memória distante” e que “a história de Macau é escassamente discutida fora do contexto da atracção turística”. É verdade que a dimensão portuguesa da história local foi frequentemente ignorada, especialmente logo a seguir ao território ser devolvido à China, em 1999. No entanto, exóticos e “tipicamente locais” no olhar do turista, os pastéis de nata trazidos para Macau pelos britânicos há 30 anos e os galos de Barcelos made in China são inacreditavelmente bem-vindos aqui.
Bruner (2004, 25) chama a atenção para como “especialmente nas áreas do turismo bem estabelecido, à medida que uma nova cultura se desenvolve para turistas, a forma como populares locais contam as histórias das suas tradições a estrangeiros influencia como falam e expressam a sua cultura para si próprios”, e tal ocorre com Macau. “Embaixadores culturais” locais, tal como artistas de origem chinesa, músicos, guias de património, dançarinos de folclore português e muitos outros residentes locais começaram a identificar-se com a narrativa destinada aos turistas e a partilhar uma identidade, inimaginável há algumas décadas, quando diferentes gentes tinham relações de poder desiguais, e distintos, se não mesmo contrários, valores e interesses.

4. O Largo da Companhia de Jesus não tem sido apenas um local sagrado para turistas, mas também um importante palco de cenas históricas nas últimas décadas: “cartazes de grandes caracteres” (da-zi-bao em mandarim) ao estilo da Revolução Cultural foram colados na fachada de pedra por chineses contra o “imperialismo português” em 1966, antes dos apoiantes locais demonstrarem no monumento apoio aos estudantes chineses de Tiananmen em 1989; o largo foi também escolhido como local onde membros do governo e civis de alta patente se encontraram pela última vez e acenaram em despedida ao último governador português em 1999, dez dias antes dos residentes de origem chinesa aí celebrarem a retoma do exercício de soberania da China – isto citando apenas alguns dos eventos que aqui tiveram lugar.
Para além do Centro de Actividades Turísticas e Culturais e de alguma arquitectura colonial, a estrutura mais atraente no local deve ser provavelmente um pedaço de uma escultura intitulada “Homens, mulheres e um cão” do artista português Lagoa Henriques (1923-2009), inaugurada em 1994 no dia de Camões para celebrar a amizade ente Portugal e a China. Ironicamente, aquele título constitui, por si só, um tabu na cultura chinesa. A escultura, que revela uma senhora com um traje tradicional de origem manchu, a cheongsam (China), a entregar uma flor de lótus (Macau) a um cavalheiro (Portugal) por cima de uma fonte seca tem um aspecto desinteressante. Outra parte desta obra, “Rapariga Pequena com o Cão”, que revelava uma rapariga asiática e que celebrava o ano do cão, foi removida em 2010 devido à sua “postura desrespeitadora” e “conotação sexual”. Uma semana depois, a estátua do jesuíta Matteo Ricci, vestido com um traje chinês dos han, foi inaugurada pelas autoridades locais e pela Sociedade de Jesus nas ruínas do antigo colégio de São Paulo. Quando lá estive, não encontrei vestígios da remoção da escultura “Homens, mulheres e um cão”, apenas uma criança chinesa aí sentada, rodeada de turistas. Optei por não fotografar essa cena.

5. No Largo da Companhia de Jesus, os turistas vão ao encontro das suas necessidades e expectativas, o que, por sua vez, tem vindo a moldar por completo esta atracção “sagrada”, e a influenciar a forma como os locais interpretam este pedaço de herança cultural de Macau. As Ruínas de São Paulo têm agora, nas palavras de Chambers (2000), “uma imagem formada pelo ‘olhar do turista’”.
Embora me sentisse como um turista, especialmente naquelas lojas de lembranças criativas, não fui capaz de comprar um pastel de nata português feito por uma padaria cantonense, um gelado turco ou um café do Starbucks. O que achei interessante foi a portugalidade, ignorada pelos discursos públicos, em geral, mas enfatizada ali na praça. Apesar de ter nascido em Macau quando esta ainda se encontrava sob administração portuguesa, familiarizei-me com o mohinga e o ohn-no-khao-swe birmaneses ou o lapis legit e o bika ambon indonésios muito antes de ter provado pastéis de bacalhau.
Enquanto estudante de Antropologia Visual, e ecoando aqui as palavras de Flores, a minha “ou-man-idade” (em vez de dizer, por exemplo, “macanesidade” – a palavra “macaense” é utilizada quase exclusivamente pelos luso-descendentes) “me colocó en una posición de distancia y cercanía” (Flores 2005, 8). Ao longo dos anos sempre tentei compreender Macau e a mim mesmo. Ainda recorrendo às palavras do académico, o entendimento que adquiri ao estudar a história e a identidade de Macau “con el tiempo reveló muchos aspectos de mi propria identidad” (Flores 2005, 8).
Quando ainda estava na escola secundária, escrevi um artigo sobre a Travessa da Paixão. Não sabendo português, nem nada sobre a “paixão” – era demasiado naïf – foquei-me apenas na conotação amorosa, que assumi a partir da toponímia chinesa, negligenciando involuntariamente o aspecto do nome associado ao catolicismo. A sua constante reprodução em língua chinesa, em especial em cenas de vários filmes de Hong Kong, inclusive a republicação daquele artigo a pedido do Tastes Gazette em língua chinesa, intensificaram o estereotipado “romantismo”. Foi o nome, erroneamente traduzido por volta de 1920, que tornou esta estreita e pequena rua numa atracção turística.
As Tai sam-pa ou Ruínas de São Paulo integram o Centro Histórico de Macau, parte do Património Mundial da Humanidade, transformando-se no símbolo de Macau e, consequentemente, numa “sagrada” atracção turística, como muitos outros lugares na cidade que provavelmente não terão tido qualquer simbolismo para os locais no passado.

(traduzido do inglês por Rita Guimarães)

Referências:

Bruner, Edward M. Culture on Tour: Ethnographies of Travel, University of Chicago Press, 2004.

Chambers, Erve. Native Tours: The Anthropology of Travel and Tourism, 2nd Edition, Waveland Pr Inc, 2009.

Clayton, Cathryn H. Sovereignty at the Edge: Macau and the Question of Chineseness, Cambridge, Mass.: Harvard University Asia Center, 2009.

Flores, Carlos Y. “Video indígena y antropología compartida: una experiencia colaborativa con videastas maya-q’eqchi’ de Guatemala.” In LiminaR. Estudios Sociales y Humanísticos, vol.3 no.2 San Cristóbal de las Casas jul./dic. 2005.

Graburn, Nelson H. H. “Tourism: The Sacred Journey.” In Hosts and Guests: the Anthropology of Tourism, edited by Valene L. Smith, 21-36. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1989.

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