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cultura

Catorze maçãs, Birmânia e chineses “no exílio”

March 9, 2018
(em colaboração com Mathilde Denison Cheong)

Catorze maçãs, Birmânia e chineses “no exílio”

Depois dos dez dias de agitação na Berlinale, dez dias de bufetes visuais, sinto-me como se tivesse “comido demais”. O lado político deste festival gigantesco, embora já não me incomode tanto como da primeira vez que fui, teve uma grande influência na forma como visualizo os filmes da selecção. O facto de, este ano, haver uma produção taiwanesa ligada à Birmânia (ou oficialmente Myanmar), atraiu-me imediatamente.

A Birmânia não é só vista pela Europa como um lugar longínquo. Min Tin é um nome antiquíssimo do país em cantonês (ou Miǎn Diàn em mandarim; Bién Tién em fuquinense; Mién Tién em hac-ka; ou Míe Díe en xangainense), o que significa “campos longe das habitações” ou das “cidades”, ou “territórios longínquos”. Trata-se de um dos poucos nomes de países em chinês ainda em uso, que representa o antigo sinocentrismo, uma vez que descreve a sua posição geográfica em relação à China. O nome “Territórios longínquos” encontra-se também no velho japonês escrito (Men Den), no vietnamita (Miến Điện) e, raramente, no coreano (Myeon Jeon).

Mas a Birmânia também não é tão longe quanto isso. Mesmo antes de termos em Macau um secretário de governo nascido naquele país, já falávamos das celebrações do ano novo birmanês Thingyan e do bairro da Rotunda de Carlos da Maia, onde cresci, sem esquecer as sopas de fitas mohinga ou ohn no khauk swe, tão amadas pelos turistas de Hong Kong.

Conhecendo pessoas de Macau ligadas a este país do sudeste asiático, podemos descobrir ainda uma grande riqueza cultural que foge da homogeneização política (os dialectos sínicos, se não esquecidos pelos filhos dos seus falantes, são ainda bem preservados) e das notícias que contribuem para uma imagem negativa ou puramente turística do país. A Birmânia não é, evidentemente, só isso.

Com Chou Fang-sheng, uma amiga fotógrafa e tradutora taiwanesa, fui à estreia mundial do filme “14 Apples” de Midi Z, realizador birmanês de origem chinesa, agora naturalizado taiwanês. A sua longa-metragem “Ice Poison” (2014) foi escolhida para representar Taiwan nos Óscares.

“14 Apples” é um documentário (e não apenas um documentário) dourado, uma cor que me fez automaticamente pensar nos pagodes exóticos. É, acima de tudo, um filme etnográfico lindo e bastante divertido. Muito bem sucedido no seu género. O filme conta a história de um birmanês vindo de uma aldeia remota para se tornar num monge por 14 dias, a fim de se libertar da insónia que sofre. Ele come, todos os dias, uma maçã.

Numa passagem do filme, duas aldeãs queixam-se ao monge que os seus compatriotas são maltratados na China pelos patrões chineses e perguntam se todos os chineses são assim tão malvados. Ao ver esta cena, pergunto-me como é possível criticar os chineses tão livremente diante de Midi Z, também operador de câmara neste filme, e também ele “chinês”, tendo, na minha opinião, aparência de birmanês.

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Conversas com Chou Fang-sheng (à esquerda) e o realizador no Delphi Filmpalast/ Foto: Cheong Kin Man

Após uma pesquisa mais profunda para este artigo, fiquei surpreendido ao constatar que o monge, também co-produtor do filme e colaborador do realizador desde o seu primeiro filme, também é de origem chinesa. Na realidade trata-se de um birmanês conterrâneo de Lashio de Midi Z!

É surpreendente porque, em comparação com a Malásia, onde é visível a separação entre os malaios e os chineses, o realizador, o protagonista e mesmo os meus amigos birmaneses parecem perfeitamente integrados na sociedade e nas tradições birmanesas. Wang Shin-hong, que “interpreta” o monge, tem mesmo aparência de birmanês!

Para quem esteja familiarizado com os sistemas de romanização de nomes chineses no mundo, Wang Shin-hong é um nome enganador: pensamos que é de Taiwan por causa da romanização Wade-Giles. Mas de facto ele também tem raízes na província chinesa de Yunnan, tal como Midi Z. Nos primeiros filmes, Midi Z assinou com o nome Kyawk Dad Yin, transliteração birmanesa a partir do dialecto de Yunnan. Segundo o jornal diário birmanês The Irrawaddy, o realizador usava ainda o nome birmanês Thain Kha Min Lwin quando deixou o país. Para mim, as histórias de como ao longo dos tempos têm sido dados nomes aos chineses no estrangeiro são fascinantes.

“14 Apples” – e sem conhecer outros filmes precedentes do mesmo cineasta – seria para mim apenas mais um belo filme “exotizado” por um realizador estrangeiro. Na realidade, em quase todos os filmes que fez, Midi Z fala da sua origem, do seu lar, da partida e do regresso a casa: ele conta as histórias dos chineses, ou melhor, dos “yunnaneses” da Birmânia – como é o seu caso – e que lutam por uma nova vida no estrangeiro.

Aqui em Berlim, ainda não tenho acesso a todas as suas longas-metragens. Arrependo-me de não ter visto “Ice Poison” em Bruxelas, onde estreou quando lá vivia! Vi, em contrapartida, todas as curtas disponibilizadas pelo próprio Midi Z no youtube. Sem todos estes filmes que Midi Z fez ao longo de uma década, “14 Apples” ficaria, na minha modesta opinião, incompleto.

Juntos, os filmes são um “auto-retrato” extensivo do realizador: “Paloma Blanca” (2006), “A Home-Letter” (2008), “Motocycle Driver” (2008), “Adeus, Taiwan!” (2009), “Hua-xin Incident” (2009, co-produzido por Hou Hsiao-Hsien), “The Man From Hometown” (2009), “Journal de Chantier” (2010) e mais. Este “auto-retrato” estende-se igualmente aos “yunnaneses” a viver na Birmânia “em exílio”, em busca da felicidade.

Post scriptum: “Cidade de Jade” do mesmo realizador foi convidado para o Festival Internacional de Documentário de Macau no ano passado.

 

Foto do autor: Sadaf Javdani

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