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A outra metade do céu

March 2, 2018

A outra metade do céu

Macau regista na sua história algumas páginas negras. Felizmente não muitas. Mas ao longo dos seus quatrocentos anos de existência regista principalmente um grande número de páginas em branco. Entre elas contam-se as que deveriam falar sobre a questão da escravatura e não falam.

A escravatura foi tema tabu até uma determinada altura, depois foi colocado na lista dos preconceitos nacionais, depois encerrado no índex da censura. Enfim, sempre foi assunto sobre o qual ninguém parecia querer falar e muito menos estudar. Aliás, o primeiro a abordar com alguma frontalidade o tema da escravatura foi um estrangeiro.

Sim! Charles Boxer o grande historiador da expansão portuguesa para Oriente no tempo das descobertas. Poderia dizer mesmo o ainda quase único historiador da nossa gesta de quinhentos anos por estas paragens.

O atrevimento desse professor inglês custou-lhe caro. Até então estava no pedestal dos heróis do Estado Novo, que lhe tinha estendido passadeira vermelha na Academia Portuguesa de História, ao mesmo tempo que o agraciava com duas altas condecorações. Mas falou na escravatura e pronto! Salazar arrancou-lhe as medalhas do peito e mandou os cronistas do regime zurzi-lo em todos os jornais de Portugal continental insular e ultramarino. Num relâmpago Boxer passou de herói a vilão.

Depois disso os académicos parecem ter deixado definitivamente de considerar o assunto como capaz de dar corpo a um artigo quanto mais a um estudo.

Entretanto as coisas foram mudando, mesmo aqui em Macau. Eu diria que subitamente aparece uma obra que aborda o tema desfazendo tabus. Um livro que é muito mais do que uma pedrada no charco.

Chama-se “A outra metade do Céu, escravatura e orfandade femininas, mercado matrimonial e elites mercantis em Macau nos séculos XVI-XVIII”. Este livro, para além de falar na generalidade sobre a escravatura em Macau, aborda igualmente o tema na sua perspectiva especificamente feminina. Sim, não só havia escravatura em Macau, apesar das referências a esse facto serem mínimas, como o tráfico de escravas (sim escrevi escravas), algumas mesmo crianças com oito, nove anos de idade, constituía um ramo altamente lucrativo do comércio de Macau.

Nesta história bem pouco edificante do feminino na colónia portuguesa da China, não posso deixar de referir uma contradição que o historiador Ivo Carneiro aqui aborda também. É que se por um lado as mulheres eram tratadas como coisas, por outro o seu poder económico não raro transformava-as de escravas em senhoras com palavra a dizer não só no governo das suas próprias casas, mas também nos negócios da própria colónia. E a célebre Marta Mierop, tão bem romanceada por Austin Coates em “City of Broken Promises” não foi caso único. E foi de tal forma que Macau acabaria por ser igualmente pioneiro na outorga de direitos às mulheres, nomeadamente quando as coloca em pé de igualdade com os homens no sistema de candidaturas comerciais da cidade no tráfico do sândalo de Timor.

O autor deste livro, Ivo Carneiro de Sousa, historiador de créditos firmados, doutorado pela Universidade do Porto, possui diversos graus académicos de várias universidades europeias e americanos, tendo publicado extensa bibliografia.

Também pela autoridade de quem escreve vale a pena ler. É um tema de que muito poucos terão falado, pelo menos com esta profundidade.

Sobre a obra

Título

A outra metade do Céu, escravatura e orfandade femininas, mercado matrimonial e elites mercantis em Macau nos séculos XVI-XVIII

Autor

Ivo Carneiro de Sousa

Edição

Saint Joseph Academic Press, 2011

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