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Portugal no tecto do mundo

January 2, 2018

Portugal no tecto do mundo

Por estranho que hoje possa parecer, a verdade é que antigamente era bem mais fácil desbravar mundo por mar do que por terra. Portugal é disso exemplo. Isto porque ainda na primeira década do século XX era bem mais fácil – senão mesmo mais rápido – viajar a bordo do vapor que fazia a carreira entre Lisboa e Porto do que pôr o pé no estribo da diligência que, desde não muito antes, tinha começado a perfazer, aos solavancos e por etapas, os trezentos e tal quilómetros que separam a capital de Portugal da sua segunda cidade. Um trajecto no qual os viandantes, para além de terem de enfrentar o incómodo dos buracos no macadame, se arriscavam aos frequentes maus encontros com as quadrilhas de ladrões que assolavam a então “estrada real número 1”. Se o panorama de insegurança terrestre e maus caminhos era assim como acabei de dizer no limiar do século XX, pode imaginar-se o que era o mundo viageiro em tempos mais remotos.
Pode dizer-se que, apesar de todos os perigos – e não eram poucos – a verdade é que ir por mar até à Índia, empresa a que Portugal se propôs no “tempo das descobertas”, era projecto exequível. Chegar lá por terra era assunto resolvido à partida, ou seja impossível.
Só tendo em conta tudo o que disse é possível avaliar o grau de temeridade que levou o padre jesuíta António de Andrade a atrever-se a ir a pé ao “Tecto do Mundo” e descobrir o Tibete, país que a Europa então nem sequer sabia que existia. A proeza foi tanto mais extraordinária quanto o padre não levava consigo nem armas nem guardas que o protegessem dos perigos. De facto consigo levava apenas e literalmente a fé que tinha em Deus.
O relato desta história, apesar de ser a todos os títulos extraordinário, acabaria por desaparecer no pó dos arquivos da Companhia de Jesus, em Roma, sem que ninguém lhe desse atenção alguma. Assim o assunto ficou no olvido, bem como o protagonista da aventura. Isto até que, séculos depois, outro jesuíta foi vasculhar nas gavetas do Vaticano e encontrou o fabuloso manuscrito da descoberta do Tibete da autoria do seu confrade do século XVII.
Quem meteu ombros à tarefa de dar à estampa as cartas de Andrade foi o Padre Videira Pires. Missionário jesuíta natural de Freixo de Espada à Cinta, Videira Pires veio para Macau pouco depois de terminada a Guerra do Pacífico na segunda metade da década de 40 do século XX. Aqui dedicou-se ao ensino e deixou marca na poesia local com vários livros publicados, mas levou a cabo também importantes estudos históricos sobre o território, que foram publicados no “Boletim da Diocese de Macau”.
No que toca ao Tibete, o seu estudo seria publicado em livro pelo Instituto Cultural de Macau em 1988 sob o título “Portugal no Tecto do Mundo”. Este livro que Videira Pires complementa com um pouco da história das missões jesuítas no Tibete – que acabariam por desaparecer ingloriamente – é de leitura obrigatória para quem queira saber alguma coisa sobre a expansão de Portugal por terras do fim do mundo. Uma odisseia desconhecida em que os “adamastores” eram outros e que passou ao lado da pena do grande vate que nunca ouviu falar dela.
Sem poeta para cantar da terra o que Camões cantou do mar, esta saga, que não era menor do que a outra, perdeu-se por completo da memória dos homens bem como o duplo feito de António de Andrade que, partindo da cidade de Srinagar, no Norte da Índia, descobriu a nascente do sagrado rio Ganges ao mesmo tempo que encontrava o mítico Tibete, reino do “budismo tantra”. Foi uma marcha excruciante a do padre, entre as neves eternas dos Himalaias. Uma ascensão até aos cinco mil metros de altitude através de desfiladeiros gelados, dormindo ao relento sobre a neve apenas com uma manta e nada mais. O resultado foi a hipotermia, a perda da sensibilidade e até a queda de um dedo que gelou e se separou da mão sem o padre dar conta a não ser quando notou que o sangue jorrava e tingia de vermelho a neve branca. A juntar a tudo isso, o frio acabaria por fazer com que perdesse a visão. Chegou assim ao Tibete sem ver a terra prometida.
Neste ponto do livro, o autor fala também de outro herói que veio a seguir a Andrade e conclui relatando o fim da aventura por aquelas extraordinárias terras com a morte de outro não menos famoso jesuíta, dizendo ter terminado assim, apagada e triste, uma das odisseias mais extraordinárias da história de Portugal, a de Bento de Góis, descobridor do Grão Cataio.
O Grão Cataio era o nome pelo qual era conhecida a China na Europa antes dos portugueses lá terem chegado.
Na senda da transposição para o cinema das aventuras dos jesuítas pelo mundo, com filmes como “A Missão” de Roland Joffé ou o “Silêncio” de Martin Scorcese, a saga do padre António Andrade no “Tecto do Mundo” dava sem dúvida outro belíssimo argumento.

Sobre a obra

Título

Portugal no tecto do mundo

Autor

Pe. Benjamim Videira Pires

Ano

1988

Edição

Instituto Cultural

Capa

Mio Pang Fei

4 Comentários
  1. Fernando Vilarinho

    Boa noite Existem vários aspectos no texto do artigo que não concordo. Li esse livro há cerca de 15 anos. Não tenho os pormenores presentes no momento, mas no geral conheço bem o livro. O texto de António de Andrade a que este artigo alude, são na realidade as cartas que este jesuíta na época enviou ao Provincial dos Jesuítas em Goa. Goa, que era a sede do Padroado Português no oriente. Essas cartas nunca estiveram perdidas e sempre foram sobejamente conhecidos. Para exemplificar falo da 1ª carta. Esta carta escrita em 1624 (eram escritas sempre em Latim), pouco depois foi publicada em vários países da Europa. Em Portugal foi em 1626. Ao longo dos séculos as cartas foram sendo publicadas em várias edições e com várias criticas e comentários, até hoje Depois quando refere o «o outro herói que veio a seguir a Andrade», na realidade veio antes, e as territórios que Bento de Góis percorreu são completamente diferentes dos de António de Andrade. Bento de Góis atravessou os Pamires (Pamir), que na época eram conhecidos pela expressão "Tecto do Mundo", por se pensar que seriam as montanhas mais altas do mundo (como sabe, na altura os Himalaias não eram conhecidos na Europa). daí o titulo do livro, e que depois é complementado/alicerçado pelas viagens de António Andrade aos Tibete/Himalaias, no que passou apenas desde o séc. 19 a ser conhecido como o verdadeiro tecto do mundo. Existem mais alguns aspectos no texto que não concordo, mas penso que já falei dos principais. Tenho vários livros de Benjamim Videira Pires, infelizmente nunca tive a sorte de o conhecer. Já tentei por várias vezes adquirir o livro biográfico "P. Benjamin Videira Pires, Meu Irmão" escrito por Francisco Videira Pires, e publicado em Macau, Tentei vários contactos com o Instituto Internacional de Macau, mas é muito difícil trocar mensagens com eles. Tenho poucas esperanças de alguma vez ler/obter esse livro. Cumprimentos,

  2. blogextramuros

    Pode tentar na Delegação Económica e Comercial de Macau em Lisboa. É na Avenida 5 de Outubro, nº115. Cumprimentos

  3. José Americo Pereira

    Gostaria adquirir este livro

  4. António Graça de Abreu

    Meu caro João Guedes Saudação amiga neste Novo Ano 2018. Desculpa-me duas leves adendas. Benjamim Vieira Pires, que ainda tive o gosto de conhecer (apresentou a minha tradução dos Poemas de Bai Juyi, em 1991, aí em Macau) era natural de Torre Dona Chama, Mirandela e não foi o descobridor do texto fabuloso do António de Andrade. Vê Esteves-Pereira, Francisco. 1924. O descobrimento do Tibete pelo P. António de Andrade. Coimbra: Imprensa da Universidade.e Aquilino Ribeiro, nos Portugueses das Sete Partidas. Abraço, António Graça de Abreu

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