a china além da china
30 anos revista MACAU

30 anos revista MACAU: O fim dos passeios dos pássaros

July 11, 2017

30 anos revista MACAU: O fim dos passeios dos pássaros

passaros_primeira pagina

Em 2006, Macau lançava um aviso de combate à gripe das aves e os criadores de pássaros, habituados a passeá-los de gaiola, passaram a partilhar uma sala alugada.

“Às dez da manhã não estarão mais de 20 [pássaros] na sala alugada pela Associação Amantes dos Pássaros. Os outros, os que vieram às cinco da manhã pela mão dos donos, para o convívio matinal, já partiram. Mas o barulho ainda é ensurdecedor. Sobretudo quando se desafiam no canto”, lê-se na reportagem de Marta Curto, publicada em Junho de 2008, na revista MACAU.

O grupo, constituído apenas por homens, ali permanece até às 13 horas. Depois, as gaiolas são cobertas por um pano, para que não se melindrem com os barulhos na rua, e inicia-se o caminho de regresso a casa. “Os pássaros tomarão então o banho diário, numa gaiola separada, onde uma pequena tigela com água espera que chapinhem sozinhos. O mesmo ritual, todos os dias”, continua a peça.

Já houve um tempo em que “as casas de chá se enchiam de aves, e em que, no Verão, a rua 5 de Outubro e a rua da Barra eram invadidas por pássaros e grilos.”

Em 1999, existiam cerca de 300 residentes de Macau com pássaros, mas “hoje não deverão ser mais de 200 e mesmo assim só 50 pagam as quotas da associação que aluga a única sala de Macau, onde os anos não parecem passar.” Os sócios vão dos 25 aos 70. “Em Hong Kong até existe a rua dos pássaros, em Macau temos de alugar uma sala para nos encontrarmos”, lamenta, Hui, criador de pássaros há mais de 30 anos. “Antes, nós íamos para as casas de chá e toda a gente levava os seus pássaros. Faz-lhes bem estarem juntos, com outros pássaros ao lado. Ficam felizes e, quando ficam felizes, cantam melhor. Hui fala com nostalgia.” Segundo o livro de Leonel Barros, Tradições Populares de Macau, “é prática comum na China há milhares de anos. Foi banido durante o período maoísta, mas após a morte de Mao Zedong regressou à vida dos chineses.”

No território, era o parque de Kuanyan que se enchia de pássaros logo ao nascer do dia. “Eram milhares de gaiolas que os criadores penduravam em árvores ou colocavam sobre bancos e mesas do jardim. A partir da década de 1930, “também o Jardim de Camões se tornou um local procurado pelos criadores.” Então, conforme escreve Leonel Barros, citado neste artigo, “as casas de chá pareciam autênticas lojas de passarinhos, pois 90 por cento dos fregueses não dispensavam a companhia das suas gaiolas.”

Por outro lado, “as lutas de pássaros aconteciam durante três ou quatro dias por ano, entre Março e Maio, num edifício antigo da rua 5 de Outubro, transformado em casa de pasto.” Entre as cinco e as seis da manhã, os apostadores reuniam-se para dar início à actividade. Os mais experientes “aconselhavam os criadores novatos a darem às suas aves escaravelhos para tornar o bico mais forte e levarem-nas aos jardins para que, felizes, cantassem mais, treinando assim o fôlego e a resistência.”

“O dominico é um dos pássaros de luta mais usados”, diz Hui. O criador de pássaros, que teve em tempos aves de luta agora só os quer para cantar. “Todos os pássaros daqueles homens foram apanhados em liberdade, a maioria na China. São postos à venda ainda borrachos, sem sequer terem tempo para conhecer o céu”, conta.

Há alguns criados que “já só se dedicam aos pássaros de luta”, com alguns a serem vendidos na Internet por 40 mil patacas. “E na China até há aldeias que competem entre si”, segundo Joaquim Santos, de 65 anos, igualmente sócio da associação. Cria pássaros desde os 15 e “sem eles, já não sabe viver”, comenta. “Em casa, há de alimentar o animal com baratas do mato, a base do medicamento chinês para quedas e pancadas. Não lhe tocará nas feridas, só o tentará tornar mais forte, para que o sistema imunitário do bicho faça o resto. “Nunca se deixa uma luta terminar em morte. Aparta-se sempre antes. Ninguém gosta de ver um animal morrer”, acrescenta.

Primeiras páginas do artigo “Pássaros de uma vida” de Marta Curto – Revista Macau, Série IV – n.º11, Junho 2008

 

[Este texto faz parte de uma série do Extramuros em que se recuperam alguns dos momentos que marcaram as três décadas da revista MACAU, uma das mais antigas publicações em língua portuguesa ainda em circulação]

Outros posts:

O arranque da missão chinesa (Março 2006)
Os ventos da fortuna (Julho, 2000)
O “1,2,3” trocado por miúdos (Novembro, 1996)
Os hotéis na década de 90 (Agosto, 1995)
A batalha de Coloane (Novembro, 1993)
Os 100 anos do Liceu
(Outubro, 1993)
A lepra através dos tempos (Janeiro, 1993)

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *