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Mundo de poeira

November 19, 2019
(em colaboração com Mathilde Denison Cheong)

Mundo de poeira

Um destes dias, enquanto me preparava para ir a uma livraria estatal (mesmo por trás de uma nova fachada, o passado socialista chinês permanece fresco) aqui em Hamcheu (oficialmente Hángzhōu, segundo o pīnyīn ou Hong Chao em cantonense), disse à Mathilde: “Vou escrever sobre poeira”. Apesar da minha mulher já estar habitada à minha maneira muito cantonense de falar francês e de repentinamente passar de um assunto para outro, naquele momento reparei que não me fiz compreender. Passei, portanto, toda a tarde a pensar numa forma mais adequada para explicar o que queria dizer.
Nunca escondi que sou bastante preguiçoso, mas a verdade é que é com enorme prazer que faço as grandes limpezas em casa. Parcialmente inspirado pelo livro “A Monk’s Guide to a Clean House and Mind” de Shoukei Matsumoto, que folheei por acaso no Museu de Artes de Colónia, na Alemanha, comecei a olhar cada vez mais para a limpeza de uma casa como uma fase do círculo de vida da poeira, que se renova periodicamente. Tanto em Macau como em Berlim ou mesmo aqui em Hamcheu, tenho a sorte de viver num apartamento com grandes janelas, o que em termos de limpezas implica um mesmo resultado: muita poeira. E de cada vez que faço limpezas, não consigo deixar de murmurar a mesma frase em cantonense:

“塵世,塵世呀!”
[Chan sai, chan sai ah!]
(Poeira-vida, Poeira-vida  partícula de exclamação, e ponto de exclamação)
(Que mundo de poeira!)

Sou a primeira pessoa a criticar esta minha tradução. “Mundo de poeira” não seria aqui uma tradução muito satisfatória se tivesse em conta o facto de “mundo” ser um conceito originalmente ocidental. Não é minha intenção aqui travar uma discussão à volta do conceito que a palavra “mundo” representa na actualidade; ademais, não seria capaz de o fazer porque tenho apenas lido aqui e acolá apenas algumas informações sobre a matéria. Mas já que falo nisso, lembro-me que há pouco tempo encontrei uma tradução chinesa da obra “The Chinese View of Life” do filósofo chinês Thomé H. Fang (1899-1977), publicada recentemente pela Editora Popular do Chekiam (Dje-djiang em dialecto de Hamcheu, Zhejiang em mandarim, Chit Kong em cantonense). É mais um livro muito interessante para ajudar a compreender a visão chinesa do mundo, uma obra que aqui recomendo.
E lá voltamos nós a esta palavra: “mundo”! A etimologia parece-me sempre problemática, assim como é a tentativa de encontrar a origem de qualquer outra coisa. Digo isto graças ao meu pensamento fortemente desierarquizado, e também ao impacto das minhas conversas com a Mathilde, que me costuma contar como um dos seus antigos professores dizia que a etimologia não é mais do que uma espécie de “polícia das palavras” que define a significação “original” de um vocábulo.
Mas as coisas problemáticas despertam sempre maior interesse. Para quem tem interesse pelo tema, um olhar de rajada para a etimologia da palavra “mundo” nas línguas românicas, germânicas, ‘arabo-perso-turcomanas’, etc., permite ver como as diferentes maneiras de pensar se reflectem nas diferentes línguas e dão pistas preciosas para compreender o facto de que existe ainda uma grande variedade de formas de reflexão, embora vivamos numa época de uniformização global.
Antes de arrancar para o “mundo de poeira”, pensemos em primeiro lugar sobre os equivalentes da palavra e do conceito “mundo” em chinês. Aqueles que aprendem uma língua da Ásia oriental descobrirão provavelmente que os conceitos de tempo e de espaço não estão neste lado do mundo divididos da mesma maneira que na filosofia “ocidental”, pelo menos no chinês clássico. Quando ponho aqui a palavra “ocidental” entre parêntesis, é simplesmente porque a filosofia é uma coisa ocidental. Esta “confusão” chinesa do tempo e do espaço não é, aliás, única no mundo (pelo menos foi isso que entendi na minha aprendizagem da língua persa). Aqui estão alguns exemplos de como se diz a palavra “mundo” em alguns falares chineses, assim como em várias das suas variantes no contexto mais alargado da Ásia oriental:

世界

chê kai (hac-ka nas várias suas variantes padrões – esta língua tem vários padrões)
sai kai (cantonense padrão)
sé kai (fuquinense taiwanês)
shìjiè (mandarim padrão)
sî djiá (xangainense, idioma dos wu, ou u)
sî djiê (dialecto de Hamcheu, idioma dos wu)

segye (coreano)
sekai (japonês)
thế giới (vietnamita)

“Mundo de poeira” em caracteres cursivos, um trabalho de caligrafia de Pao-Kuei Huang. Cortesia da curadora de artes Yipei Lee

Como podemos observar por estes exemplos, a palavra “世界” é composta por dois caracteres, “世” e “界”, respectivamente.
Neste artigo, concentremo-nos no primeiro carácter desta palavra. “世” não existe aparentemente nos arquivos da escrita em ossos oraculares, a mais antiga escrita chinesa conhecida. Este carácter tem origem, em contrapartida, num outro carácter mais antigo – “枼” – que remete originalmente para a forma de uma árvore. Após uma desconstrução deste carácter na escrita moderna (e só é passível de desconstrução quando se trata de um carácter e não de um símbolo), vemos o elemento “世” em cima e “木” que representa uma árvore em baixo. Quem aprende chinês “tradicional”, isto é, o chinês escrito em caracteres tradicionais, em contraste com o chinês em caracteres “simplificados”, pode notar que o carácter “枼” é justamente uma parte constituinte de um outro carácter: o de “folha”, “葉”, ou seja, ao carácter anterior é adicionado o radical “艹” que simboliza planta. Em contrapartida, na escrita “simplificada”, escreve-se “叶”, um carácter que já existia nos antigos registos, embora sem associação directa a “folha”. A razão da escolha para a “simplificação” teve origem na forma de falar dos wu (na província do Chekiam), onde ambos “葉” e “叶” têm a mesma pronúncia.
Voltando ao carácter “枼”. Na sua origem etimológica, “世”, que se encontra na parte da cima do carácter, representa ramos com folhas, e “木”  é a parte de baixo de uma árvore com raiz. Este carácter foi registado nos finais da dinastia Shang (Seung em cantonense ou Sang em dialecto de Hamcheu), período que terminou no meio do século XI a. C. É evidente que desde o início da história chinesa, “枼” metaforiza as gerações de homens que, como os ramos, têm origem na mesma raiz. Parece-me que esta ideia faz parte das coisas essenciais para quem quer aprender a cultura chinesa.
Mais tarde – mais precisamente nos primeiros tempos da dinastia Zhou (Chao em cantonense ou Djei no dialecto de Hamcheu), que sucedeu aos Shang – a palavra “世” já existia por si só e representava-se na forma de uma planta, simbolizando a vida de um homem. Segundo um dicionário etimológico chinês, que data do século I ou II, a vida (ou como se diz hoje, a esperança média de vida) do ser humano andava pelos 30 anos. Que curta era a vida!
Escusado será dizer que esta “planta” possuía uma quantidade considerável de significados: enquanto substantivo significava tanto “ano” como “vida”, “geração”, “época”, “dinastia”, ou “descendência”, entre outros. A palavra em sânscrito “लोक” (loká) foi justamente traduzida em chinês com o carácter “世”. A língua chinesa ficou mais rica com este conceito budista que foi então progressivamente integrado na cultura chinesa. Para o budismo, e segundo o conhecido dicionário que o imperador manchu Elhe Taifin (1654-1722) mandou compilar, este carácter abrange a totalidade da vida entre os céus e as terras e uma grande complexidade que não me sinto capaz de explicar aqui em todas as suas nuances. Aquilo que posso dizer é que muitas línguas na Ásia utilizam ainda hoje esta palavra para designar o conceito ocidental de “mundo”, como é o caso do birmanês, do tailandês, e naturalmente de várias línguas na Índia.
Mas regressemos agora à poeira que era, aliás, o objecto inicial deste artigo. “Poeira” escreve-se 塵, na forma tradicional, e diz-se chan em cantonense, chén em mandarin-pīnyīn, djan em dialecto de Hamcheu, sang em xangainense, t’un ou tin em fuquinense, e tsin nas várias variantes do hac-ka. O carácter “塵” é composto por “鹿” (cervo) na parte de cima e “土” (terra) na parte de baixo. Comparando com o carácter acima apresentado, o ideograma “poeira” apareceu muito mais tarde na história chinesa. Numa cópia da obra “道德經” (Dào Dé Jīng segundo o pīnyīn, Daow-Tc Keq de acordo com o Padre Joaquim Guerra, Tou Tak Keng em cantonense, nas palavras de Luís Gonzaga Gomes, ou ainda Dô Teh Djing em dialecto de Hamcheu), que data do século II, este carácter é apresentado de uma outra forma (que aparentemente não existe no sistema do Unicode): com três cabeças de cervos, ou seja, repete-se três vezes a parte superior do carácter “鹿” em forma de pirâmide, escrevendo-se uma vez mais “terra” – “土” – por baixo. Este carácter existe igualmente com os três cervos inteiros sobre a “terra” (ver imagem ao lado). Um ou vários cervos correm sobre a terra e o seu curso resulta numa elevação de poeira.
O carácter “simplificado” para poeira é uma das antigas variantes do carácter tradicional padrão de hoje que vemos na parte de cima: “尘”. Esta versão “simples” é composta pelo elemento “小” (pequeno) na parte de cima e de novo “土” (terra) em baixo. Entre os seus numerosos significados, encontramos, por exemplo, “muito tempo”, “imundo” ou “traço”. Podemos, claro, justificar o uso do carácter “simplificado” “尘”, no sentido de que se trata de algo muito pequeno ou muito ligeiro sobre a terra. Não obstante, a poeira não se limita na cultura chinesa a isso. No taoismo, a poeira simboliza uma vida. Uma vida tão ligeira quanto o pó. Paradoxalmente “uma poeira” pode ser também uma grandeza imensa, como o é no budismo, em que esta compreende toda a sabedoria do universo. Por isso, “poeira” pode ser uma metáfora para uma “grande diferença” ou algo “largamente diferente” na língua chinesa literária.
A palavra “poeira” em chinês, que é de uma riqueza extraordinária, absorveu vários conceitos do sânscrito provenientes do budismo. Admiro profundamente o pensamento budista, embora sem qualquer intuito religioso. Por isso, a minha compreensão é infelizmente muito limitada, apesar do budismo estar tão enraizado na cultura chinesa. Todavia, é-me claro desde há muito tempo que o meu coração está – tal como a minha casa – cheio de poeira. Empenho-me em limpá-la, mas bem sei que ela sempre volta.

 

Imagem de destaque: “The Gravekeeper”, ilustração da artista taiwanesa Ling-yu He